Em meio à pandemia, comunidades Portelinha e Otacílio Holanda foram alvo de ação

 

Texto: Géssika Costa

Fotos: Mirella Camargo

Pai Wagner de Shòrókè tinha acabado de tomar o café da manhã quando percebeu uma movimentação estranha na comunidade Portelinha, localizada na Cidade Universitária, parte alta de Maceió, onde mora e mantém um terreiro há mais de oito anos. Da porta de casa, avistou a presença de diversas equipes da Secretaria Municipal de Segurança Comunitária e Convívio Social, da Secretaria de Desenvolvimento Territorial e Meio Ambiente (Sedet) e da Polícia Militar de Alagoas (PM-AL).

Ao fundo, o barulho ocasionado pelo trabalho das retroescavadeiras e de três viaturas com sirenes ligadas dava os sinais de que dali em diante, a sexta-feira (17) seria diferente. Aos poucos, contrariando as recomendações dos órgãos de saúde pública e, inclusive, da própria Prefeitura de Maceió quanto ao isolamento social, dezenas de moradores começaram a sair de suas residências e se aglomerar para tentar entender o que estava acontecendo.

Em plena pandemia da Covid-19 e um mês após os decretos Municipal e Estadual que estabeleceram as medidas de prevenção contra o coronavírus — mais de três mil pessoas das comunidades Portelinha e Conjunto Otacílio Holanda tiveram a notícia que não poderiam mais ficar em casa — uma vez que a ordem de despejo foi dada. A instrução era a de que dez dias a partir da sexta-feira, ou seja, nessa segunda-feira (27), as famílias teriam que sair do local. Mas na prática e para surpresa de todos, a demolição de algumas construções em andamento começava naquele momento.

Atônitos com a situação, moradores começaram a gritar e a chorar desesperados ao perceber que o pouco que haviam construído, como casas de tijolos e alvenaria, estava virando pó com a ação das máquinas. Ao todo, 15 imóveis foram demolidos, mas a perspectiva é de que toda a comunidade, em breve, possa ser despejada da área e as residências até então ocupadas venham ao chão. Dentre os imóveis considerados irregulares pela Prefeitura, há dois templos religiosos de matriz africana, a Casa de Resistência de Matriz Afro Abassá de Angola Oya Igbale e a Ilé Alàkètu Asè Sòhòkwè. 

“No dia, todo mundo entrou em desespero pelo que estava vendo. Aqui, só para se ter uma ideia, a maioria das pessoas trabalha na Ceasa, como comerciante ou como coletor de materiais recicláveis. Cada um vendendo suas coisas, mas agora os relatos das dificuldades financeiras são frequentes. Encarei tudo isso como a tacada final dessa gestão. Eles nos disseram que essa área vai ser utilizada para a construção de unidades habitacionais, mas só agora no final do mandato?”, indaga Pai Wagner, da Ilé Alàkétu Ase Sòhokwè.

Ainda de acordo com o babalorixá, muita gente que reside na região há mais de 50 anos está com medo de perder suas casas e ficar desabrigada neste momento. “Quando eles chegaram, logo cedinho, foram notificando os que estavam nas casas e demolindo os imóveis. É uma tremenda falta de humanidade com a gente e com a história de vida de pessoas que moram há muito tempo”, disse o babalorixá.

Em carta aberta, Mãe Vera de Oyá, do Abassà de Angola Oya Ugbale, repudiou a ação da Prefeitura de Maceió e ressaltou a contribuição de movimentos sociais e ativistas. O terreiro da líder religiosa, um dos mais antigos da capital alagoana, promove diversos projetos sociais com crianças e jovens e ajuda famílias na região. Atualmente, o templo religioso está arrecadando alimentos e materiais de limpeza a fim de diminuir as perdas financeiras ocasionadas pelas medidas de isolamento social contra a Covid-19.

“Fomos surpreendidos no último dia 17 com a presença de representantes municipais com aparato militar e máquinas demolindo casas e distribuindo intimações de despejo com o prazo de 10 dias para nos retirarmos. Repudiamos esse ato que anula o direito de viver de forma digna”, diz um trecho da nota.

 

 

Exposição ao novo coronavírus

A ação do segundo mandato do prefeito de Maceió, Rui Palmeira (sem partido) se soma a outro episódio ocorrido em 2015. À época, a Favela do Jaraguá, também conhecida como Vila dos Pescadores, comunidade composta por pescadores e marisqueiros, foi desocupada após uma ação judicial movida pela Prefeitura. Alegando realocação dos moradores para um conjunto habitacional situado a 4kms da Vila dos Pescadores e reurbanização da área, pescadores que moravam na região há mais de 50 anos tiveram de deixar seus lares. Além dos pescadores, o terreiro de Maria Vitória de Lima, a Mãe Vitória, presente há quatro décadas na Zona Portuária foi demolido.

Leia mais: Impunidade de crimes religiosos prevalece na Terra do Quebra

O professor de História com mestrado em Sociologia pela Universidade Federal de Alagoas, (Ufal) Antônio Daniel Marinho classifica a ação da Prefeitura como inconsequente, uma vez que ao ameaçar de despejo as famílias em meio à pandemia põe em risco os moradores da localidade deixando-os expostos ao novo coronavírus e podendo promover consequências na saúde de uma população já vulnerável.

“O que eu vejo é que isso já não é inclusivo em tempos normais e muito menos agora que estamos passando por um regime de exceção em relação ao cotidiano. No momento como esse, é algo deplorável e sinistro que podemos ter. Para mim, cancela qualquer tipo de discurso que essas autoridades possam ter a respeito dos cuidados da vida humana neste momento ou em qualquer outro”, argumenta Marinho.

 

O Doutor em Educação pela Universidade Federal de Alagoas e pesquisador da identidade, da diversidade cultural e do racismo, Clébio Correia de Araújo reflete que o olhar estatal ainda é planejado de maneira vertical. “Não se tem essas preocupação. Historicamente não começa ou termina nesta gestão. Há ainda um planejamento de cima para baixo quanto às políticas habitacionais sem pensar a inclusão. É um paradigma que especialmente a gestão pública adota em relação ao mais pobres”, explica Correia.

Quanto à possibilidade de demolição dos terreiros nas duas comunidades, religiosos e ativistas das religiões de matriz africanas compararam o despejo da gestão municipal ao Quebra do Xangô — um dos episódios mais violentos ocorridos em 1912 contra o povo de santo no país. À época, uma milícia paramilitar invadiu e quebrou terreiros em Alagoas. Para o Doutor, não há como comparar linearmente o episódio, mas há aspectos em comum.

“Eu diria que são momentos históricos distintos, mas há vieses parecidos porque continua sendo a forma da máquina estatal olhar para as religiões afro e não pensá-las no patamar de legitimidade como outras religiões, sobretudo as judaico-cristãs. A gente não pode deixar de fazer a seguintes pergunta: se fosse um igreja católica ou evangélica essa ordem existiria?”, indaga.

Despejo é adiado

Dias após a ação, a Secretaria Municipal de Segurança Comunitária e Convívio Social (Semscs), disse que o fato foi desencadeado após denúncias de moradores da região sobre a existência irregular de lotes em área pública e que os responsáveis por aproximadamente 50 imóveis irregulares foram notificados para a desocupação e remoção dos equipamentos instalados, por estarem invadindo a área pública.

Após mobilização do Instituto Negro de Alagoas, a Ordem dos Advogados do Brasil, a Defensoria Pública do Estado, o Ministério Público de Alagoas e a Rede de Terreiros articularam com o Executivo Municipal a prorrogação da ordem de despejo por mais 30 dias até o final do decreto de quarentena. Enquanto isso, um grupo de ativistas e líderes comunitários trabalha para fazer o cadastro de todas os moradores do local, a fim de apresentar o histórico de cada pessoa que reside na região. A proposta é anexar o maior número possível de provas para apresentar aos órgãos competentes e barrar o despejo agora remarcado.

Nota da Prefeitura de Maceió

A Prefeitura de Maceió informa que, durante execução de obras de drenagem na parte alta de Maceió, constatou a existência de loteamento irregular e construções em área pública, no mesmo local em que uma ação atendia a denúncias de moradores. Para viabilizar a execução da obra, foram demolidas construções em andamento, mas não ocupadas, e os responsáveis pelas edificações ocupadas foram notificados para desocupação. No entanto, considerando a Situação de Emergência Internacional de Saúde Pública, e em atenção a recomendações da representação da Organização das Nações Unidas (ONU) para a Habitação, Defensoria Pública Estadual e seccional alagoana da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Prefeitura informa que estão suspensas todas as ações de desocupação enquanto perdurar a determinação de isolamento social em razão da pandemia do coronavírus (covid-19). As ações para coibir novas invasões e de reintegração de espaços públicos ocupados irregularmente serão retomadas tão logo a situação de saúde pública esteja estabilizada.

Nota da Semscs

Para viabilizar a execução da obra, foram demolidas construções em andamento, mas não ocupadas, e os responsáveis pelas edificações ocupadas foram notificados para desocupação.

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