OAB-AL diz que há uma ausência de interesse da sociedade em denunciar os casos de linchamento; veja entrevista

Nos últimos dois anos foram registrados cerca de 151 casos de linchamento e 25 ocasionaram em mortes no Estado de Alagoas. Apenas nos quatro primeiros meses de 2022, foram notificadas 22 ocorrências resultando em dois óbitos, segundo os dados da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB – seccional Alagoas) obtidos pela reportagem do Olhos Jornalismo.

Os números mostram que esse tipo de violência tem sido cada vez mais frequente e precisa ser debatido amplamente, desde a socidade civil aos órgãos responsáveis em combater o problema. O membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB, Ronaldo Cardoso, explica que o linchamento é uma reação da população que “se acha imbuída de punir essa pessoa, muitas vezes ocasionando em morte, tortura, entre outras violações do direito”. Saiba mais no vídeo: 

As pesquisas que se debruçam a estudar os casos de linchamentos no país não são recentes. Em 2000, a Revista Pesquisa Faesp divulgou um estudo realizado pelo professor de sociologia, José de Souza Martins — o pesquisador criou um banco de dados contabilizando quase 2 mil ocorrências no país no período de 54 anos, de 1954 a 1998. Em 2018, a Saiba Mais publicou uma reportagem na qual especialistas alertam sobre o aumento dos linchamentos — resultados da cultura do ódio. 

Tanto os estudos quanto a reportagem apontam para o crescimento no número de espisódios de “justiçamento” no Brasil. Contudo, nem todas as ocorrências estão sistematizadas e não há um perfil concreto das vítimas, o que dificulta a criação de um panorama da situação. Essa realidade também se reflete em Alagoas.

“Temos por base jornais ou veículos oficiais de imprensa, como os dados estatísticos da Segurança Pública. Porém, existem sociólogos que apontam que a cada um caso que as instâncias de poder estatal tem conhecimento, ocorreram outros 10. Ou seja, há uma margem imensa de subnotificação dos dados”, explica Cardoso. 

Advogado, membro da Centro de Defesa dos Direitos Humanos e do núcleo de advocacia racial do INEG/AL, Ronaldo Cardoso – Foto: Arquivo Pessoal

Para entender o que está por trás dessa falta de informação envolvendo esses tipos de casos no Estado, o Olhos Jornalismo entrevistou o jurista responsável pela área na entidade. O resultado você confere logo abaixo>

Lilian Santos: Qual motivo explica a escassez nos dados sobre os linchamentos em Alagoas?

Ronaldo Cardoso: Parte de uma ausência de interesse da própria sociedade em noticiar esses casos, o pessoal acredita que isso é legítimo, que linchar seria um ato legítimo, esse poder punitivo popular. Aí, as próprias instâncias de poder, a mídia não dão o devido valor, não vislumbram esses sujeitos como seres humanos que estão sofrendo violações de direitos. Também existe a questão da subnotificação, há uma ausência de sistematização desses dados, não há uma colheita nas ocorrências. Por vezes, os agentes de segurança pública vão atender alguma ocorrência de roubo/furto e não há a sistematização dos dados que viabilize nós tomarmos conhecimento de informações mais concretas ou correlatas a realidade, que seria algo mais palpável.  

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L.S.: O trabalho da comissão da OAB também é afetado, de alguma forma, quando muda-se a gestão, uma vez que cada gestão tem sua forma de trabalhar na comissão?

R.C.: Não é que haja uma ausência ou um impessoalismo em tratar a situação, mas sim, uma ausência de sistematização em razão dos cursos de direito não dar o aporte necessário para os operadores fazerem uma sistematização. A gestão do Dr. Roberto Moura, presidente da nossa CDDH (Centro de Defesa dos Direitos Humanos), propõe que pesquisadores, pessoas que já tenham o trato desses casos de criminologia/violações dos direitos humanos e aporte técnico e teórico na sociologia possam ocupar esses cargos como membros da CDDH e trazer uma visão diferente daquela “cega” do jurista, que por vezes, é pegar um fato e submeter às normas e acreditar que a realidade se esgota nisso. 

L.S.: Quais são as saídas para essa situação? Há falhas na Segurança Pública do Estado para que isso aconteça?

R.C.: Seria pretensioso da minha parte dar uma resposta fechada, hermética sobre o tema, mas acredito que seja essa ênfase na concentração da população em achar que o ato de linchar não é tão criminoso quanto o suposto furto ou a outra ação que a pessoa cometeu que os leva a puni-la. Reforçar que todo cidadão tem direitos fundamentais, ao devido processo legal, ampla defesa e essas outras coisas. Também enfatizar e cobrar das autoridades públicas que realizem uma ronda ou um modelo de segurança pública mais próximo da realidade de cada comunidade, porque isso é um pouco homogeneizador, acreditar que a segurança pública em cada dinâmica social vai ser aplicada da mesma forma. Isso não vai resolver o problema de criminalidade daquelas pessoas e, por vezes, vão se sentir legitimadas a linchar outra pessoa. Infelizmente nunca vai existir sociedade sem crime, isso é uma ilusão, crime é um fenômeno como diria Durkheim “corriqueiro” do trato social. Cabe ao estado tentar minorar essas condutas, de uma forma mais aproximada da realidade de cada bairro. 

L.S.: O atual cenário político e de república armamentista contribui para isso?

R.C.: Não diria que só o atual cenário, mas diria que a história social do Brasil impõe e segmenta pessoas em classe. Já dizia Roberta da Mata, que na dinâmica social brasileira existiriam pessoas que seriam cidadãos, ou em outra dinâmica, pessoas de bem e marginais. Daí podemos tirar que é comum, corriqueiro, no trato da concepção de estado brasileiro segmentar pessoas; o próprio racismo estrutural, as questões de gênero, desigualdade social que divide pessoas em grupos que seriam aqueles que a vida importa e as que não importam, as vidas matáveis. Esse grupo é especialmente de pessoas negras, pobres e periféricas, como demonstra os dados do Anuário de Segurança Pública, essas pessoas são sempre as mais vulneráveis a todos os tipos de violência, seja estatal ou não. Outra coisa são os mecanismos de punição que, por vezes, quando se trata de uma pessoa negra que encarna esse estereótipo de criminoso, de perigoso, a punição, o linchamento se dá de uma forma completamente diferente quando é uma pessoa branca. 

L.S.: Na maioria desses casos há responsabilização dos indivíduos?

R.C.: Nós temos cobrado das autoridades que têm competência — o Poder Judiciário, a Polícia Civil, os órgãos do Ministério Público — que atuem, cumpram suas atribuições constitucionais/legais e possam propor a perseguição penal a essas pessoas que cometeram esses crimes que, por vezes, não encaramos como crime linchar uma pessoa. Porém, são crimes graves e não podemos criar essa sensação de impunidade, de legitimar através dessa via. Apesar de ser uma opinião pessoal, não acreditar no direito penal, que isso seja uma forma de resolução de conflitos, é o caminho que está posto na nossa sociedade para resolver essas condições e os conflitos que surgem. 

L.S.: Como a Comissão pretende trabalhar esse tema nessa nova gestão da OAB?

R.C.: Nossa comissão pretende trabalhar nessa perspectiva que eu tenho colocado, aliando a ciência à prática da advocacia, na junção dessas duas áreas buscando sistematizar esses dados, demonstrar que eles sofrem linchamentos e buscando realmente a responsabilização, também vamos propor políticas públicas. Já marcamos uma reunião com a Secretaria de Segurança Pública e o delegado da Polícia Civil para entender como se dá essa sistematização de dados desses relatórios que eles publicam, porque às vezes, não há sequer a menção que ocorreram linchamentos, quando os veículos de mídia demonstram outras coisas. Há casos e eles elencam como espancamento e isso, não necessariamente, é um linchamento ou um justiçamento. Nós estamos tentando cobrar e vamos propor políticas públicas de contenção desses danos, dessa destituição do estado democrático de direito pela própria população, buscando sempre rever e atribuir cientificidade no que fazemos para demonstrar, não nossa opinião, e sim na realidade concreta dessa situação nefasta que são os linchamentos. 

*Estagiária sob supervisão da editoria.

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