Escritor e realizador cinematográfico Lucas Litrento escreve artigo sobre a pandemia em Alagoas para o OQOONV

Desde o dia 24 de março, quando o presidente Jair Bolsonaro disse que tinha histórico de atleta, as únicas medidas efetivas de combate ao coronavírus vêm sido duramente sabotadas no país. Naquele dia, Alagoas contava com 10 pessoas contaminadas pela covid-19, segundo dados da Sesau. Hoje, dia 14 de junho, enquanto escrevo esse texto, já são 22.199 casos confirmados e 744 pessoas falecidas. Os números não param de crescer. Durante esse período, ficou claro que não existe apenas a batalha contra um único vírus. A pandemia não cria, pelo contrário: age como uma lupa, expondo ainda mais os abismos e rachaduras que rondam as estruturas da nossa sociedade. O que hoje reverbera é resultado de tudo aquilo que nunca foi resolvido.

Lembro de uns versos: “escrever um poema a um homem / antes que o levem”, da poeta Bianca Gonçalves. Quando leio esse poema sinto urgência, ultimato e despedida, ele se chama “necropolítica”. Essa palavra, antes de ser o título do poema, é um conceito do filósofo camaronês Achille Mbembe. Ele diz que existe uma nova forma de matar, consciente e legalizada por todos os poderes democráticos; nada de massacre clandestino, de crimes hediondos que estampariam capas de jornais, ele se refere à política da morte que se espalha no cotidiano, como um vírus. Significa literalmente, que através das suas ações institucionalizadas e da manutenção das desigualdades sociais, o Estado decide quem vive e quem morre. E a necropolítica não nasceu em Wuhan. Ela é bem mais letal que o coronavírus.

Antes do Brasil ser o epicentro da epidemia, quando assistíamos chocados as centenas de caixões na Itália, os mais propensos a morrer eram os mais velhos, o recorte de letalidade era feito com base na idade: quanto mais velho, mais chance de morrer. Naqueles dias, eu temia pela minha vó. Hoje, a realidade mostra outra coisa: que quanto mais à margem, quanto mais pobre, quanto mais negligenciado. Agora temo pelos pais, pelo meu irmão, pelos meus primos e vizinhos, pela minha vida. O Brasil, com a sua segregação moderna, com a sua engenharia de matar e controlar mais da metade da sua população, modificou o comportamento do vírus.

É claro que o problema também é generalizado. Muita gente não anda de máscara, se aglomera em comércio, faz fila pra entrar em shopping, marca festa de aniversário, esconde o laudo médico dos próprios familiares por vergonha. Não existe mais quarentena, o povo tá de saco cheio. Mas e o Estado não faz nada? E as fiscalizações que o governador diz intensificar cada vez mais a cada decreto renovado? E a Prefeitura de Maceió proibindo as fogueiras das festas juninas por motivos de força maior? E a hashtag vidas negras importam e o orgulho de ser da terra de Zumbi? Se o coronavírus não é mais levado a sério pela maioria dos brasileiros, a culpa é do Estado Brasileiro na sua totalidade.

Vejam. Já estamos em Junho, choveu muitos nos últimos dias. Nesse período, os ônibus andam de janelas fechadas. As pessoas já não respeitam a quarentena, o comércio vai abrindo cada vez mais, muito antes do retorno ser legalizado. É importante que se diga que existe um delay, como se a bola fosse chutada antes do apito. Então, os ônibus estão cheios novamente porque a quarentena vai sendo afrouxada a cada decreto; enquanto, paralelamente, os números de casos e de mortos não param de crescer. E o que o prefeito faz? Assina um decreto que permite que os ônibus voltem a circular com pessoas em pé, desde que respeitem as marcações de distanciamento. Não, isso não é uma piada, é o Rui Palmeira.

Os navios negreiros saíam lotados de homens e mulheres escravizadas, onde muitos não sobreviviam ao trajeto e eram jogados no Atlântico. Isso gerou uma cicatriz permanente no oceano: cardumes de tubarões passaram a seguir esse mesmo trajeto. Pra muita gente, o Oceano Atlântico é vermelho-sangue.

Quando o prefeito assina um decreto que permite a circulação de ônibus lotados quando nem chegamos ao pico da pandemia em Alagoas, no período de menor adesão ao isolamento social, no meio de uma crise generalizada em Brasília, ele está fazendo uma escolha. Qual a mensagem que ele deixa para as pessoas que partem das periferias e cruzam a cidade pra trabalhar, exatamente como o meu pai, todos os dias? Do que adiantam as hashtags vidas negras importam nas postagens do governador Renan Filho se a partir do momento em que assinou a flexibilização das regras da quarentena ele fez uma escolha? O vírus não é político, como acusam alguns bolsonaristas, mas as mortes dos infectados mais pobres sim. São mortes estimadas e até projetadas, sempre para hoje.

Você está no paredão e tem que escolher entre dois carrascos. A arma do primeiro é uma faca, pequena e afiada; ele dá um golpe a cada meia hora. O segundo carrega um fuzil e só atira uma vez. Essa é a nossa democracia. Querem que eu acredite em policial antifascista enquanto irmãs e irmãos pretos são assassinados diariamente por fardados em todo o país, não apenas na Terra da Liberdade; querem que eu acredite que os prefeitos e governadores nos servem, enquanto os mesmos cedem apenas às pressões do grande empresariado e dos industriais; querem que eu acredite que as instituições alagoanas são antirracistas enquanto as mesmas permitem o aumento dos mortos por coronavírus, esses, em sua maioria, negros. Querem que eu aceite isso calado, que morra calado.

Agora lembro do escritor americano James Baldwin, que disse “eu não posso ser pessimista, porque estou vivo”. Eu espero que isso mude e até acredito que os governantes voltarão atrás, depois de muitos corpos empilhados. Esse afrouxamento não vai durar um mês, todas essas fases vermelhas, amarelas, laranjas, nada disso visa combater a pandemia. É difícil ser minimamente otimista, mas é preciso tentar, é preciso que se grite. Não é exagero, vejam os outros países, a grande maioria dos países. O afrouxamento só vem depois de uma queda real e brusca do número de casos e de mortos, isso é óbvio. Mas não aqui. Estamos no Brasil, o país mais racista do mundo, o exportador de castração em massa.

Para uma pessoa da margem, da grande maioria de trabalhadores, que acorda cedo e cruza a cidade dentro de um ônibus lotado pra servir a elite local, sempre os mesmos sobrenomes desde sempre, existe diferença entre escolher a faca ou o fuzil?

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *