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A tecitura de Diabolô

Escritor alagoano anuncia pré-venda da nova edição do livro de contos

Texto: Jean Albuquerque

Imagem em destaque: Escritor Nilton Resende. Foto: Josué Seixas

A repetição incansável usando a melhor linha para tecer o melhor tecido. Costurar, cortar, voltar a costurar para que tudo possa estar perfeito, trabalhar até alcançar a exaustão — como Penélope, que teceu um sudário anos a fio, aguardando o retorno de Ulisses. Assim o escritor produz o texto, no intuito de conseguir ter a convicção de que ele está pronto para ganhar o mundo. Não é diferente com Nilton Resende, 50, escritor, ator, professor universitário e diretor de cinema que está lançando uma nova edição de Diabolô (2020), por sua editora, a Trajes Lunares. A empreitada durou longos anos — entre revisões e reescrita de alguns trechos —, tudo na tentativa de conseguir melhorar ainda mais um dos livros de contos de maior relevância do estado de Alagoas.

Na nova edição, a capa ganhou a assinatura do próprio Nilton Resende em parceria com Ulysses Lins. Trata-se de uma intervenção sobre um quadro do artista plástico e escritor A.Etc.. Para celebrar seu aniversário e o relançamento do livro, o autor fez uma live no Facebook, no sábado (13), com um coletivo literário e microeditora de Maceió, Ofélia. A conversa contou com a presença dos escritores Amanda Prado, Luiz Felipe e Richard Plácido.

A primeira edição de Diabolô é fruto do prêmio LEGO em 2009 e só veio a ser lançado em 2011, pela Edufal. No ano do seu lançamento, o saudoso crítico literário Alfredo Monte escreveu uma resenha em seu blog, o Monte de Leituras. Alfredo também o citou como um dos destaques ficcionais do ano de 2011. Além disso, foi falado no programa Leituras da TV Senado, apresentado pelo Aguinaldo Tadeu, com comentários de Maurício Melo Júnior a respeito de obras literárias.

A obra é composta por nove contos. Nela, há uma ambientação sólida, um mundo físico. É impossível não imaginar-se nas ruas do bairro Prado do passado — o mesmo da infância do autor. O livro de contos ainda traz diversas questões, como por exemplo a perda da infância em um dos contos, abusos sexuais em outro e um certo erotismo, certo voyeurismo.

Dois contos de Diabolô foram traduzidos e publicados em revistas literárias mundo afora. “A ceia”, em espanhol no primeiro número da Machado de Assis Magazine, editada pela Biblioteca Nacional para divulgar a literatura brasileira na Feira de Frankfurt (“La cena”, trad. de Pablo Cardellino Soto, 2012); em francês na revista D-Fiction (“Le repas”, trad. de Stéphane Chao, 2018); em inglês na revista Bookanista (“The supper”, trad. de Kim M. Hastings, 2019). O outro texto foi o conto “A fresta”, em inglês na Litro Magazine, revista literária distribuída no metrô londrino (“The crack”, trad. de Alison Entrekin, 2012).

Resende também publicou o livro de poemas O Orvalho e os Dias (Cone sul, 1998; Edufal, 2006; Imprensa Oficial Graciliano Ramos, 2019), bem como a sua tese de doutorado intitulada A construção de Lygia Fagundes Telles: edição crítica de Antes do Baile Verde (Edufal, 2016). Recentemente, venceu o edital da editora paulista Urutau , por onde irá lançar o seu novo livro de poemas, batizado de Ouriço. Participa de vários projetos literários e escreve em seu blog, o https://trajeslunares.com/.

Você pode comprar o livro na pré-venda acessando o site da editora Trajes Lunares: compre o livro clicando aqui

O O que os Olhos Não Veem conversou com o escritor, e você pode conferir o bate-papo logo abaixo.

Jean Albuquerque — Fala um pouco sobre o processo de produção do livro e a experiência de lançar independente.

Nilton Resende — O livro vem sendo revisado há muitos anos. Mas agora eu peguei cada um dos contos e revisei novamente, promovendo diversas alterações neles, como cortes e inserções de trechos, mudança na ordem de alguns períodos, mudança na pontuação de alguns períodos para imprimir um ritmo diferente do que estava anteriormente. Mudei também a ordem de apresentação dos contos dentro do livro.

Um relançamento é algo desafiador, porque algumas pessoas já leram o livro. Mas, ele está esgotado já há alguns anos, e por diversas vezes me perguntaram sobre ele. Acho que este é o momento de ele voltar, reconfigurado.

Lançar algo independente tem suas dores e suas alegrias. Eu resolvi apostar nas alegrias: cuidar de cada detalhe do livro; fazê-lo de modo a pensar já na publicação de um próximo título, cujo projeto gráfico possa dialogar com o atual; tê-lo em minhas mãos e poder cuidar de cada parte de sua trajetória. Mas digo aqui as dores: a possibilidade de não ter uma visibilidade razoável; a dificuldade de distribuição.

Mas ter uma editora é algo com que sonho desde minha adolescência, e fico contente que isso comece a se realizar. Principalmente em sendo uma editora construída aqui em Alagoas. Fico bastante contente.

J.A. — Como será a pré-venda? Essa iniciativa para as editoras independentes funciona?

N.R. — Na verdade, estamos ainda tentando entender tudo. A pré-venda foi o que nos pareceu o melhor modo de conseguirmos levar o livro ao público sem corrermos riscos. Não temos dinheiro para risco.

Queríamos que o livro fosse publicado sem que o autor tivesse que tirar grana do bolso. Então, resolvemos utilizar esse expediente: teremos um período de um mês de pré-venda. Após isso, veremos o valor arrecadado e também quantos livros poderemos imprimir: se apenas os livros comprados na pré-venda ou se uma quantidade maior, para podermos colocar nas livrarias, ao menos nas livrarias daqui de Alagoas.

Várias editoras têm utilizado a pré-venda: grandes editoras, editoras independentes já estabelecidas, editoras com grande público, editoras nascentes.

J.A. — Estamos diante da maior crise sanitária do mundo. Como é para você lançar um livro nesse momento?

N.R. — Pois é. E nós do Brasil estamos numa situação duplamente difícil, porque estamos tendo de lidar com um vírus (Covid-19) e com um verme (o presidente) — ambos tentando a todo custo nos levar à morte.

Diversas vezes eu me perguntei se deveria relançar o livro, se deveria celebrar meu aniversário — pois este relançamento não é apenas a realização de algo em que venho pensando há muitos anos, mas é também uma forma de celebrar meu aniversário de 50 anos. Ambas as coisas me dão alegria: o livro e estar vivo, o livro e poder celebrar meio século de vida.

Então, acho que, quando a morte nos ronda, o melhor é respondermos a ela com o que nos alimenta a vida. Principalmente quando a morte nos ronda sob a forma de um presidente que tenta de todas as formas matar-nos, matar a cultura, matar o afeto. O melhor modo de responder a ele é através do que ele odeia: fazermos viver o que nos faz mais fortes. E a arte me faz mais forte, o afeto me faz mais forte.

Então, pensei sim em não lançar o livro, quando considerei a pandemia. Mas revi meu pensamento quando considerei que muito da nossa situação deve-se ao desgoverno em que estamos metidos. Lançar um livro neste período, dizer sim à vida neste período, comemorar a vida neste período é um modo de lutar contra a morte que nos querem enfiar a todo custo.

J.A. — Levando em consideração a sua trajetória na literatura. Qual a importância do Diabolô depois de nove anos da sua publicação?

N.R. — Diabolô foi meu primeiro livro de prosa — e até agora é o único. Apesar de já ter escrito dois livros de poemas, O Orvalho e os Dias (Cone sul, 1998; Edufal, 2006; Imprensa Oficial Graciliano Ramos, 2019) e Ouriço (a sair pela Urutau), sei que a prosa é o lugar em que posso dar o melhor de mim. Minhas leituras teóricas são em torno da prosa; minhas leituras prediletas são em prosa; minhas leituras poéticas alimentam minha prosa. A poesia aparece quando tenho uma questão de que preciso dar conta, e apenas conseguirei fazer isso através de poemas. Mas a prosa me persegue constantemente.

Então, voltar a Diabolô está sendo importante porque estou revendo textos que foram escritos há bastante tempo, e isso tem sido muito enriquecedor para mim. Tem mostrado para mim mesmo aspectos de que eu não tinha consciência e também problemas que eu tentei sanar durante a revisão dos contos. Além disso, mostrou-me que eu ainda gosto do livro. Acho que ele ainda pode ser lido. Eu gosto dele.

J.A. — O que tinha na primeira edição e não existe mais no livro? Conta um pouco como foi o processo de trabalhar na reedição.

N.R. — Acho que nesta nova edição deixou de haver principalmente uns problemas em relação ao ritmo de algumas frases. Tentei então umas mudanças para dar um ritmo melhor a elas, que senti um bocado truncadas quando eu as reli.

Eu venho trabalhando na revisão há um tempão, já. Cada um dos nove contos foi muito revisado já antes de ser publicado pela primeira vez. Praticamente todo texto passou por esta sequência: escrita lenta; descanso por uns meses; retorno a ele para nova revisão; novo descanso por uns meses ou uns anos; nova revisão… Como há um tempo de quinze anos entre o primeiro e o último conto do livro, tive bastante tempo para ficar revisando-os já para a publicação em 2011. Eu não tenho pressa em publicar. Eu não tenho pressa em relação à arte. O que eu quero é fazer uma arte de qualidade. E se pra isso for necessário lentidão, eu darei a ela a lentidão de que ela precisar, a lentidão que ela exigir.

Então, o livro já estava revisado há alguns anos, pensando na nova publicação. Mas agora eu o revisei mais uma vez. E já estou trabalhando na revisão da última revisão, para que ele vá à gráfica sem eu sentir que fui preguiçoso em relação a meu trabalho.

Quero dar o melhor de mim a minha arte. Eu me exijo dar o máximo de mim. Então, estou lendo e relendo os contos para tentar fazer com que elas sejam melhor eles mesmos, para que eles possam ser a melhor forma deles.

Para isso, cortei trechos, inseri trechos, fiz diversas alterações.

Além disso, aprendi muito sobre literatura, sobre escrita literária durante as aulas no Laboratório de Criação Literária do Sesc. Lendo e comentando, com os alunos, textos de autores já consagrados e textos dos próprios alunos, aprendi bastante. Sou grato a meus alunos, por terem participado desses cursos, por terem sido tão generosos em dividir suas criações com o coletivo durante as aulas. Sou grato ao Guilherme de Miranda Ramos, que sonhou esse laboratório por muitos anos e uniu-se a mim, que também já vinha sonhando com isso, e tornou nosso sonho uma bela realidade. O LAB foi algo fundamental para meu amadurecimento como leitor e como autor, e gerou frutos como alguns coletivos literários: Pernoite, Ofélia, Ignoto Literário…

J.A. — O Ouriço ganhou o edital de publicação da editora paulista Urutau deste ano. Fala um pouco a respeito.

N.R. — Ouriço é um livro que está pronto há alguns anos. É uma obra em parceria: tem poemas meus e fotografias da Vanessa Mota — fotografias de homens nus. São dez poemas homoeróticos, que descrevem um encontro entre o eu lírico e um homem.

Ele foi submetido a um edital da Urutau do final de 2018 e foi aprovado, mas foi o único livro daqui da região, o que dificultaria o lançamento e, consequentemente, resultaria em maiores custos. O Tiago Fabris, editor da Urutau, entrou em contato comigo e foi super gentil, explicou a situação e tudo o mais.

No final de 2019, Tiago solicitou que eu enviasse novamente o livro, por conta do novo edital. Agora, ele vai sair. Vai sair junto com diversos outros livros de diversos lugares do país. E daqui de Alagoas, eu e o meu amigo Isaac Bugarim, o nosso amigo Isaac Bugarim. Será massa. E há muita gente conhecida, com quem tenho contato através das redes sociais ou através de outras artes, como o cinema.

Conheci a Urutau quando estive na FLIP de 2018. Vi os livros deles num stand, conheci o Tiago. Lá, numa sala com stands de editoras independentes, vi muita coisa boa, muita editora interessante, muita gente que trabalha duro para que os autores sejam publicados, para que os livros cheguem a nós.

J.A. — Como anda a produção dos dois romances em que você está trabalhando?

N.R. — São três romances sendo escritos ao mesmo tempo. Quando aparece uma frase na cabeça, mando um e-mail para mim, colocando no “assunto” o romance a que pertence. Como sou muito disperso, tenho dificuldade de pegar um deles e seguir, seguir mesmo! Mas, o eMe (Milton Rosendo) já pegou muito no meu pé em relação a isso, e defini qual é aquele em que trabalho atualmente.

Eu estava escrevendo-o, mas parei para tratar do Diabolô.

Ao colocar o de contos no mundo, volto a esse romance. Preciso terminá-lo, para poder depois tratar dos outros.

Acho que já tenho romances com os quais me ocupar até o fim da vida. E se isso acontecer, isto de passar a vida escrevendo-os, estarei feliz.

A editora

A editora Trajes Lunares é composta por Luiz Farias, Nando Magalhães e Nilton Resende. A reportagem procurou Nando Magalhães para saber quais são os planos para o futuro. Segundo ele, a proposta é que eles comecem a operar com dois selos independentes. Um deles já está funcionando, que é o Trajes Lunares, com foco na publicação de obras ficcionais e poéticas; e o outro, o Trajes Solares, que futuramente passará a publicar obras científicas/acadêmicas com um olhar voltado para a cultura alagoana.

“Com os dois selos, buscamos resolver duas questões que são para nós fundamentais e urgentes. Primeiramente, a editora nasceu com uma preocupação estruturante de construir uma relação mais justa com os autores. Não é novidade, infelizmente, mas sabemos que, no mercado editorial, os autores, especialmente os pequenos, ou arcam com grande parte dos riscos em cada nova investida ou recebem muito pouco em troca de seu trabalho, em troca da obra que construíram. Construir soluções que tragam um equilíbrio para essa relação tem sido uma prioridade para nós”, explica Magalhães.

Um dos fatores que impulsionaram a criação da editora foi a precariedade do mercado editorial alagoano. No estado, existem poucas editoras e algumas delas estão ligadas às universidades. Além disso, há o fato de que, quando publicadas por essas editoras, as obras saem com poucas tiragens e algumas delas já estão esgotadas há muito tempo. Um dos intuitos também é ir recolocando esse tipo de publicação em circulação.

“Para nós, este é um momento de experimentar, de aprender enquanto fazemos. Parte dos riscos que assumimos serão amortecidos por trabalharmos também com produtos digitais (epub/mobi), o que por sua vez tem sido uma alternativa até agora ignorada pelas principais editoras locais. Já tem muita gente por aí com seus kindles/kobos, mas tem muito pouco material sendo ofertado por aqui para este público. Este formato não apenas tem um menor custo de publicação, como também multiplica as possibilidades de distribuição das respectivas obras, facilitando sua circulação pelas diversas plataformas de venda digitais”, acrescenta.

Depoimentos sobre Diabolô

O site convidou escritores para fazerem um relato acerca da obra. E você confere abaixo:

“Tive contato com Diabolô em 2013. Depois de lê-lo, mandei mensagem para Nilton; foram breves comentários de como fiquei impactado com a força daqueles contos. Lembro-me de ter dito que, já que não haveria a possibilidade de falar com o narrador, eu ao menos enviasse uma mensagem ao autor. Eu jamais imaginaria que teria, a partir daquele dia, um contato maior com Nilton, com Diabolô e com a literatura produzida em Alagoas. O primeiro conto é uma obra-prima. Aquele é um dos melhores inícios que já li, e creio que possa, inclusive, ser considerado como uma teoria da narrativa, se não para todos, mas para as narrativas de Nilton Resende. O método de leitura pode ser o mesmo do narrador de ‘A ceia’, que, ao morder o biscoito, não descreve o sabor, mas como ele, o biscoito, é mastigado, triturado. Não se trata apenas de sabor, mas de qual maneira os contos serão lidos.”

Richard Plácido, escritor e mestre em Estudos Literários – UFAL

“Em Diabolô, os leitores são içados pela leveza da linguagem que molda todos os contos. A leveza resendiana, longe de floreamentos, vem como um beijo de uma criança na face do avô, antes de jogá-lo ao esquecimento. A narração, ora em primeira ora em terceira pessoa, se alia às subjetividades de cada personagem, desvelando seus demônios. Os leitores, já amarrados pelo lirismo da linguagem, são impossibilitados de se esquivar do diabólico espelhado em cada personagem.”

Fátima Costa, escritora e mestranda em Estudos Literários – UFAL

“Diabolô é daqueles livros que a gente não só gosta de ler, como tem o impulso de recomendar, de levar para a sala de aula e fazer mil reflexões. O “Manual do como manusear”, por exemplo, é um primor de texto, com tanta potência sonora e poética! Gostei também muito do ‘Flamor’, além de outros contos que volta e meia me pego relendo uma outra vez. Há sempre, em todos os textos deste livro, alguma passagem que fica ressoando, que causa aquele estranhamento bom, a isca que só o talento tem.” 

Tércia Montenegro, escritora, fotógrafa e professora adjunta da UFC

 

“Na primeira vez que li Diabolô, me deparei com narrativas extremamente potentes que me causaram um desconforto imenso. Mas não um desconforto ruim. Ao contrário: por mais que eu estivesse diante da crueza do ser humano, do horror, da plasticidade de uma angústia que se desdobrava em mim como leitora, aquele mundo posto em linguagem evocava algo mais. Os contos de Nilton Resende, esses fragmentos de vida inquietantes, desconcertantes, me colocavam diante de uma espécie de beleza e diante do mesmo questionamento a que a personagem de Flamor estava submetida: ‘Como ficar impassível diante do belo?’ É impossível sair da leitura desses contos da mesma maneira de antes de adentrar seu mundo escrito. É como se de algum modo as experiências por que passam as personagens nos transformassem também. E foi na releitura do livro que meu encontro com contos como ‘A ceia’ e ‘Não é tempo de maçãs’, narrativas bastante densas tanto em termos de linguagem quanto em complexidade de suas personagens centrais, se realizou de uma maneira ainda mais bonita. A grandeza do livro, a sua potência, se revelam por meio de uma linguagem belíssima, alegórica, bastante sugestiva. A leitura de seus contos como uma busca por uma resposta à pergunta da epígrafe (‘O que é que um lobo entende da lua para a qual ele uiva com o pescoço estendido?’ A caixa preta, Amós Oz), sem nunca alcançá-la.”

Amanda Prado, escritora e doutora em Estudos Literários – UFAL

“Desde que fui convidado por Jean Albuquerque a escrever sobre o livro Diabolô, de Nilton Resende, a propósito de seu relançamento, fiquei horas pensando sobre o livro, sobre o autor – que é, antes de tudo, um amigo querido –, e sobre as diversas possibilidades de se iniciar um texto, e qual delas mais me agradaria. Logo me lembrei dos cinquenta anos de Nilton, recém completados, e de nossa amizade de vinte e poucos anos, e então optei pela leveza. Mas não sem rodeios e dúvidas. Primeiro pensei em ser didático e começar pelo início: um livro de contos premiado em 2009 e publicado em 2011, pela Edufal, e que terá agora uma nova edição revisada pelo autor e relançada em breve, pelo estreante selo Trajes Lunares. Depois pensei se o melhor caminho não seria pelo viés crítico, da análise literária, tendo como gatilho inicial, talvez, a bela capa da primeira edição, de Weber Bagetti, sobre Medusa, de Caravaggio. E daí pensar, por exemplo, na alegoria do mito: a do escritor e sua relação com o mundo, por meio de uma visão espelhada, indireta da realidade, em seu constante processo de (re)escrita e de releitura do mundo, parafraseando Ítalo Calvino, em Seis propostas para o próximo milênio (1990). No entanto, para este momento, esse caminho não faria muito sentido, pois ainda não visitamos a nova construção para entender de seus cômodos, de suas reformas. E justamente por estarmos todos em permanente construção – imagem muito cara ao autor –, algo se modifica e se reconhece em cada mudança. Assim, de início, veremos no livro uma outra capa, desta vez elaborada pelo próprio autor, a partir de um quadro do poeta e artista visual alagoano Arthur Buendía [A.Etc.]. Da primeira versão, permanece, claro, o nome “Diabolô”, e, junto com ele, certamente as personagens cindidas, petrificadas, como se incapazes de escapar do olhar implacável da medusa, que permanece como símbolo desta vez mais discreto, sem estampar a capa. Se antes da primeira edição, os contos já haviam passado por diversas revisões, agora, quase dez anos depois da primeira publicação, esses contos (e talvez outros) ganharão novos contornos, talvez sutis, mas certamente necessários. O autor já nos deu mostras de sua busca constante por uma obra permanente, e de permanente mudança. Que nós, leitores e leitoras, possamos nos permitir visitar essa antiga e nova construção, e nos reconhecer nela. E, desta vez, nós ganharemos não apenas um belo livro, ainda mais maduro, mas também um novo espaço de encontro e de circulação literária e artística: Diabolô e Trajes Lunares vêm aí, como afago e resistência.”

Bruno Ribeiro, escritor, professor e doutor em Estudos Literários – UFAL

“Relançar é fazer reler. O relançamento de Diabolô é, assim, ao menos um convite a outro olhar sobre ele. E tal olhar, lembremos, começaria por tentar advinhá-lo por seu rosto: capa e contracapa.

Foi assim que, antes de conhecer Nilton, conheci Diabolô. Aquela primeira capa – a Medusa de Caravaggio, mas em vermelho e rasurada – e o título se conjugavam, para mim, como uma tentação impermeável. O que é diabolô? Qual a razão da Medusa? Que relação secreta ambos entretêm? Hoje, eu diria que era tal como Heráclito diz do oráculo de Delfos: não fala nem cala, mas acena. Porém, detrás de uma vitrine: à entrada do saguão da antiga reitoria, num corredor, eu cruzava com aquilo semanalmente, quando ia às aulas de inglês. Agora é estranhíssimo pensar nesse vidro que o separava de mim. Veja, eu desconhecia a contracapa, justo onde estava inscrito o trecho do conto ‘A ceia’, que nove anos depois, a convite de Nilton, eu viria ilustrar. Então, à época, eu não o via como livro, mas como ícone. Palavra importante para Nilton e para mim. Ela provém do verbo grego eiko: ‘dar lugar, retirando-se diante daquilo que deve tomar todo lugar. À diferença do ídolo, o ícone apaga-se diante daquilo que ele representa; ele é apenas o sinal visível do Invisível, o sujeito ou a hipóstase propostos à contemplação daquele que não saberia se contentar em permanecer expectador’ (Jean-Yvez Leloup citando, e completando, a definição de ícone dada por Heidegger). Veja, isso parece ter se cumprido tal uma profecia, não é? Tenho agora essa impressão. De expectador, pela nova edição, tornei-me cúmplice. Teria muito a especular sobre isto (Nilton, vamos escrever algo a respeito pro Trajes Lunares? Fica o chamado). Enfim, a releitura a que nos obriga este relançamento começaria pela capa. O interessante é: sua mudança pode indicar que o autor tem novo olhar sobre a obra, pois o grito da medusa dará lugar, na nova edição, a um rosto sereno – mas em cujo olho uma criança (a inocência?) parece expirar (ou inspira algo para si, para que venha algo de fora?).

De aparência pedregosa, esse rosto se fez por uma técnica instável: vela sobre papel. Impregnação tão frágil que mal suporta o toque. Não fosse o verniz (como antes houvera, ao menos para mim, o vidro sobre a medusa), ele teria se desmanchado quando, há alguns anos, Nilton o adquiriu. Portanto, nada disto foi sob encomenda. Apenas coincidiu. E, creio, precisamente. Fazendo-a sua, penso que Nilton pôde, assim, torná-la um ícone de seu novo olhar sobre a obra. Ao que esse relançamento dará lugar, deverá acenar-se a cada leitor, mas no espaço secreto de sua leitura, de sua apropriação sobre outrem. O novo Diabolô repercute o verso sutil de Jorge de Lima: ‘vamos reler’. Antes de religare, a proveniência da palavra ‘religião’ aponta, em verdade, ao verbo latino relegere como seu berço. Divida (do grego diabolos) em dois tempos, a obra novamente nos chama a si: como à partilha da hóstia – cuja liturgia, creio, Nilton nos introduz n’A ceia: ‘Mordo o biscoito que levei vagaroso à boca, e ele quebrando-se é como ossos que se esmagam. Trituro-o e imagino desfazer-se a rede desenhada em sua superfície, lembrando-me o jogo que meu avô me ensinou e para o qual me convidou em tantas tardes. Biscoito, rede, ossos triturados. Mordo e sinto mastigar o velho, as migalhas saindo pelos cantos como se uns dedos tentassem escapar’.”

A.Etc., escritor, artista plástico e mestrando em Artes Visuais – UFPB

 

Jean Albuquerque

Jornalista, escritor e estudante de Letras na Ufal. Editor do site O que os Olhos Não Veem. Colabora com o site Negrê, correspondente em Maceió, do Portal Lunetas. Acredita no jornalismo independente, pautado pela diversidade e pelos direitos humanos.

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