Em 2020, 60.460 casos de violência sexual foram registrados no Brasil, de acordo com informações do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em 2021. É como se 165 pessoas fossem estupradas por dia. Desse total, 73,7% foram casos de estupro de vulnerável, sendo que 60,6% das vítimas tinham até 13 anos. Dentre as mais de 60 mil vítimas, quase 87% eram do sexo feminino. Nessa perspectiva, dados de 2011 do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) mostram que cerca de 7% dos casos de violência sexual resultaram em gravidez. Apesar do índice do Ipea não representar o contexto atual, o assunto traz várias reflexões e questionamentos. Será que as vítimas que engravidaram após serem estupradas conhecem, de fato, seus direitos?
No país, além da interrupção da gestação resultante de violência sexual ser assegurada, outras duas situações estão previstas: gravidez de risco à vida da gestante e anencefalia fetal, conforme o Supremo Tribunal Federal decidiu em 2012. A anencefalia ocorre quando o feto apresenta má formação e não possui cérebro, o que torna a vida inviável.
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Mesmo com essas garantias previstas em lei, o tema é cercado de tabus e preconceitos. Em Alagoas, por exemplo, muitos parlamentares ligados a instituições religiosas e contrárias à legalização do aborto* mantêm seus discursos retrógrados negando os direitos conquistados pelas mulheres. Nesta semana, em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, o vereador Leonardo Dias (sem partido), usou o plenário da Casa de Mário Guimarães para fazer apologia contra o aborto. “Que nós lembremos nesse dia de todas as mulheres que não tiveram o direito de nascer por conta do aborto”, disse em sessão na Câmara Municipal. Além disso, no final do mês de junho do ano passado, foi proposto pela vereadora Gaby Ronalsa (DEM), o PL 11, que institui a “Semana da Vida e Dia do Nascituro”, em uma evidente campanha até contra os procedimentos legais.
Informação que salva!
Se o tema gera debates inflamados por questões subjetivas e não racionais, é dever do jornalismo – como serviço de utilidade pública – trazer informação que salva vidas e não revitimize meninas e mulheres que podem ter sido vítimas de violência, que estejam em gravidez que coloquem risco à própria vida ou que estejam grávidas de feto anencéfalo. Por isso, a reportagem do Olhos Jornalismo disponibiliza os nomes dos hospitais públicos que realizam o serviço do aborto legal: Hospital da Mulher, Hospital Maternidade Santa Mônica, Hospital Universitário, todos em Maceió e, por último, o Hospital Clodolfo Rodrigues, em Santana do Ipanema, sertão alagoano. Essa lista que mostras as unidades de saúde foi obtida via Secretaria de Estado da Saúde (Sesau), por meio da Lei de Acesso à Informação. Veja, abaixo, a localização de cada hospital percorrendo o mapa.
Para Lenilda Luna, representante da organização feminista Movimento de Mulheres Olga Benário, nos casos de violência, por exemplo, se o Estado brasileiro falhou ao garantir a segurança das cidadãs, é fundamental que o próprio ente assegure o direito à interrupção da gravidez.
“Fazer um aborto é uma decisão dolorosa para qualquer mulher, mas, para além de qualquer julgamento, é preciso que a garantia legal, para mulheres que sofreram estupro, estão numa gravidez de risco ou no caso de anencefalia, seja respeitada. A lei não obriga a mulher a fazer o aborto, mas garante o direito de decidir nesses casos específicos e o Estado deve garantir os recursos para o cumprimento da legislação. É um reconhecimento da Justiça de que essas são situações de profundo sofrimento e trauma, e não se pode deixar que o único recurso que elas tenham seja buscar meios clandestinos e perigosos”, ressalta a Luna.
A representante da organização feminista lembra, ainda, que, no Brasil, o aborto – nos casos não previstos em lei – mata, principalmente, as mulheres pobres, pretas e periféricas, por isso, de acordo com Luna, a informação para os casos de interrupção de gestação garantidos em lei é responsável por diminuir os índices de morte, ao evitar procedimentos feitos em lugares impróprios e insalubres ou até mesmo diminuir os traumas relacionados à gravidez decorrente de um estupro.
Garantir que nos casos previstos em lei a mulher seja atendida no SUS com dignidade, respeito e segurança é um direito que deve ser respeitado. E o acesso a informação é primordial para o seu cumprimento
Sem burocracia
Buscando evidenciar alguns pontos sobre o tema, a reportagem do Olhos Jornalismo conversou com a advogada Nathaly Correia, do escritório Almeida Correia Advocacia. A profissional separou as principais dúvidas e questionamentos recorrentes para mulheres que desejam abortar, nos casos previstos em lei. Confira, abaixo:
1 – Mulheres não precisam de autorização judicial nem de boletim de ocorrência feito para abortar em caso de gestação decorrente de estupro, gestação de feto anencéfalo e gravidez de risco à vida da gestante, conforme o artigo 128 do Código Penal Brasileiro. Independente de ter ou não queixa registrada em relação ao crime, é direito da mulher o acompanhamento devido no sistema público de saúde.
2 – O código penal, em nenhuma destas situações, em nenhuma destas portarias e leis, estabelece como obrigatoriedade, que a mulher deva fazer a denúncia, realizar o boletim de ocorrência e noticiar o fato à polícia. Um crime hediondo foi cometido, portanto deve-se dar todo o apoio e acolhimento necessário caso isto seja da vontade da mulher, para que ela possa fazer sua denúncia com toda segurança.
3 – Mas, caso a mulher queira fazer o BO, a equipe de serviço social deve acompanhar a vítima até a delegacia da mulher, para que, com o acolhimento necessário, ela faça o boletim de ocorrência e os processos de investigação policial ocorram para identificar o agressor. Caso a mulher não queira fazer a denúncia e o boletim de ocorrência, mantêm-se o direito da mulher de acesso à interrupção da gravidez, isto é, a interrupção não pode ser cerceada. A mulher tem até 6 meses para formular a denúncia nos casos de estupro. Os procedimentos da saúde são para diminuir danos, trazer aspectos benéficos na assistência, tratar e dar acesso ao procedimento do aborto legal e não deve ser confundido com os procedimentos reservados à investigação policial ou judicial.
*Nota da redação: O termo “pró-vida” costuma estar associado ao movimento que se coloca como a favor da vida do feto, ou seja contra o aborto. Existe, especialmente nos Estados Unidos, uma resistência ao termo pró-vida e uma tentativa de reformular os dois lados da escolha pensando que não é uma questão de ser pró-vida ou contra vida, mas próescolha e anti-escolha. A luta pela descriminalização do aborto é (pró-vida) pela vida das mulheres. Quando contrários à legalização do aborto se colocam como pró-vida desconsideram a vida da mulher que é afetada pela insegurança da ilegalidade. No jornalismo, o termo é usado majoritariamente para se referir ao grupo de pessoas do “movimento pró-vida”, mas a repetição do termo para identificar este grupo, sem explicações adicionais ou questionamentos, enfatiza erroneamente a ideia de que uma mulher que faz um aborto não é pró-vida. Um bom caminho pode ser falar em pró-escolha e anti-escolha, ou, de maneira direta, a favor da legalização do aborto e contra a legalização do aborto, como colocado nesta reportagem.
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