Dados de 2019 mostram que o estado está acima da média nacional no assunto
Quatro anos depois, diante da filha Evellyn Thayanne, Thaynara Maria, 30, observa com carinho e felicidade a transformação pela qual sua caçula vem passando desde 2017. Na memória digital do celular, as imagens de outrora não condizem com a realidade atual. Franzina e com pouco mais de doze meses de vida, a criança estava com o peso e a estatura abaixo do normal para a sua idade, até que a mudança, literalmente, bateu à porta.
Do contrário, talvez ainda estivesse nas estatísticas de crianças desnutridas de Alagoas. Dados de 2019 da plataforma Primeira Infância Primeiro, da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, mostram que o estado está acima da média nacional quando o assunto é desnutrição infantil entre crianças de até cinco anos de idade. O Brasil tem 4,13% de crianças nessa situação, enquanto o segundo menor estado do Nordeste possui 4,61% desse grupo com “Peso Baixo ou Muito Abaixo para Idade”.
Hoje, a menina é atendida pelo Centro de Referência em Nutrição Infantil de Alagoas (Cren-AL), organização formada por médicos, nutricionistas, psicólogas, enfermeiros, dentistas, assistentes sociais, cozinheiras, professoras, administradores, pedagogos etc. —, na maioria dos casos de forma voluntária, que trabalham visando minimizar os efeitos de distúrbios nutricionais primários: a obesidade e a desnutrição, como é o caso de Evellyn.
Antes de entrar no Cren, a pequena tinha uma dieta à base de leite materno, sucos de fruta, biscoitos do tipo maisena e papas de cremogema e arrozina. “Ela aprendeu a gostar mais de frutas e algumas verduras”, comemora Thaynara, que além de Evellyn é mãe de Tallis Felipe, 13, e Aline Beatriz, 10.
A história da menina em busca de uma vida verdadeiramente saudável para uma infância de pleno desenvolvimento de seu potencial é apenas mais uma dentre as mais de 224 mil crianças e cerca de 20.250 famílias já atendidas e recuperadas nutricionalmente pela iniciativa.
O Centro foi fundado pela professora doutora em Nutrição pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal) Telma Toledo, em endereço estratégico, no conjunto Denisson Menezes, no Tabuleiro do Martins. Esta é uma das áreas de Maceió que possui a renda média familiar de pouco mais de R$200 mensal, de acordo com dados cruzados do Censo do IBGE de 2010 e do Atlas do Desenvolvimento Humano do Brasil. Quem chega ao Centro, que assiste a 24 comunidades e favelas da parte alta da capital, passa por uma avaliação rigorosa da equipe multidisciplinar para entender, detalhadamente, qual o seu estado de saúde.
Essas crianças permanecem o dia inteiro por lá, de segunda a sexta-feira, das 8h às 17h, mas é preciso destacar: o Cren não é uma creche. Ele funciona com atendimentos médico-pediátrico, nutricional, odontológico e pedagógico diários, além de atendimento social e psicológico às famílias. O espaço é reconhecido nacional e internacionalmente, com os prêmios da Central Única das Favelas (Cufa) e da Fundação Mapfre, da Espanha.
No primeiro ano de pandemia de Covid-19, assim como todas as áreas, a instituição teve seu trabalho prejudicado. As atividades em grupos com crianças foram suspensas para evitar a proliferação do vírus. Com isso, a principal preocupação dos gestores foi tentar arrecadar material de higiene para as famílias e, principalmente, garantir a alimentação na mesa. No entanto, os atendimentos pediátricos, nutricionais e psicológicos foram mantidos, mas de maneira reduzida e com cuidados.
“Eu costumo falar que o Cren é uma mãe. Além de oferecer uma alimentação super saudável, também há um acompanhamento nutricional clínico, psicológico e pedagógico. Sem falar no amor e no carinho deles e cuidado que eles têm por todas as crianças, né? Meus filhos evoluíram muito. Eles aprenderam a socializar com outras pessoas e a se alimentar bem”, conta Thaynara, que também é voluntária na organização.
De acordo com Myria Viana, gestora do Cren, por se tratar de crianças cujas famílias estão em condições de vulnerabilidade social, além de desnutridos, os meninos e meninas chegam com quadro de problemas respiratórios e desregulação intestinal, que ocasiona episódios frequentes de diarreia. A iniciativa também oferece aos responsáveis orientação nutricional, para melhor aproveitar os alimentos em detrimento de sua situação financeira, marcando atendimento com assistente social, a fim de que sejam orientados sobre quais programas sociais do governo podem ser inseridos. Além de nutricional, também são promovidos cursos de geração de renda para a família da criança. A comunidade no entorno da instituição também é beneficiada pela ação.
“As crianças com desnutrição moderada e grave de 1 a 5 anos de idade são encaminhadas para atenção em semi-internato. Em ambulatório, atendemos crianças com agravos nutricionais. Realizamos buscas ativas, que consistem em ir nas comunidades, batendo de porta em porta, para avaliarmos a condição nutricional das crianças”, explica a gestora.
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Apesar do feito do Cren, o problema, por aqui, ainda está longe de ser resolvido. Dois anos antes da atualização dos dados de desnutrição infantil pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, o Governo de Alagoas lançava o Programa Criança Alagoana, o Cria, que desenvolve um trabalho direcionado aos cuidados com a primeira infância e tem como uma das linhas de atuação o combate ao problema.
De acordo com a assessoria de comunicação do Programa Criança Alagoana, logo que foi lançada, a iniciativa garantiu a criação de casas de parto humanizado, a construção de espaços lúdicos nos Centros de Referência em Assistência Social e das Unidades de Pronto Atendimentos, além da realização de visitas domiciliares. A gestão estadual também tem parceria com o Cren, que assessora o Governo nas ações e metodologias utilizadas pelo Centro.
Neste contexto, foi feito, inclusive, um mapeamento da situação nutricional de meninos e meninas de seis municípios em formato piloto, além da realização de capacitação com agentes públicos e mutirões de combate à anemia. A parceria acontece até hoje, e a metodologia do Cren-AL é ofertada para todos os municípios que desejam melhorar a qualidade nutricional das suas crianças.
Recentemente, o Governo lançou mais uma estratégia de acesso à renda. A iniciativa foi batizada de Cartão Cria e disponibiliza mensalmente R$100 para gestantes e crianças em situação de vulnerabilidade de até 6 anos, para que possam investir na compra de alimentos.
Apesar dos investimentos, a professora de Enfermagem em Saúde Coletiva na Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP) e integrante do Comitê Científico do Núcleo Ciência Pela Infância (NCPI), Lislaine Aparecida Fracolli, explica que a saída para a diminuição ou combate à desnutrição infantil passa, antes de tudo, pela luta contra a desigualdade social. Além disso, de acordo com a especialista, é necessário o investimento maior dos gestores em políticas de prevenção.
Quando a gente olha quais são os lugares mais necessitados, há um foco maior em políticas públicas e ações nesses lugares. Ao pensarmos em alternativas para o problema, temos dois eixos: intervenções do ambiente da recuperação – como o Cren – e intervenções para prevenção e promoção da saúde
Fracolli argumenta que a prevenção pode parecer mais complexa, mas exige menos aplicação de recursos humanos e financeiros e, a longo prazo, os resultados são mais satisfatórios.
“Ela é complexa porque vai precisar de vigilância às mães no pré-natal e depois acompanhando das crianças pós-nascimento, e fazendo sempre um investimento em programas intersetoriais”, explica. Por exemplo: embora a criança possa estar na creche, ela passa a maior parte do tempo com a família. “Então é a família que temos que empoderar, supervisionar, monitorar. Assim, a gente vai ter efeitos positivos sob a nutrição da criança, para que ela cresça bem e se desenvolva na sociedade”, pondera.
A preocupação da estudiosa tem fundamento. É justamente nesse período que ocorre a chamada janela de oportunidades — fase em que o aprendizado de determinadas habilidades e competências acontece de maneira mais facilitada quando somos expostos a estímulos e experiências para este determinado aprendizado. A pedagoga e especialista em psicopedagogia e educação inclusiva Luana Tavares argumenta que, em sala de aula, esse atraso é percebido na falta de atenção da criança, na desmotivação durante as atividades propostas e até mesmo no desenvolvimento psicomotor, resultando num baixo rendimento.
“Uma criança desnutrida terá grandes prejuízos no seu aprendizado. Pois uma barriguinha sempre cheia resulta num infante mais voraz pelo saber e pronto a descobrir coisas novas e, acima de tudo, saudável”, aponta.
A professora explica como a unidade educacional ou creche pode ter papel fundamental para realizar um primeiro diagnóstico sobre o problema.
“Quando isso acontece, primeiro comunicamos à gestão escolar a situação da criança. Após isso, a família é convidada a escola para tratarmos da situação. Como sou de escola pública, a parceria com outros setores também se faz necessária”, diz. Nesse tipo de contato, por exemplo, é explicado aos familiares a importância de frequentar as unidades básicas de saúde.
“Esta reportagem é uma produção do Programa Sala de Redação, realizado pela Énois – Laboratório de Jornalismo, do projeto Jornalismo & Território, com o apoio da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, Porticus e Open Society Foundation”.