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Boletins epidemiológicos revelam que as mortes por Covid-19 em AL têm cor e ela é preta

71% das pessoas que faleceram por complicações do coronavírus são negras

Texto: Jean Albuquerque e Géssika Costa

Elza Soares com sua voz potente já deixou bem claro que em terras tupiniquins: “A carne mais barata do mercado é a carne negra”, em A Carne, canção do disco Do Cóccix Até o Pescoço (2002). Em Alagoas, diante da maior crise sanitária do mundo ocasionada pela pandemia do novo coronavírus não é diferente.

Prova disso é que a primeira morte por Covid-19 no estado a ecoar, inclusive nacionalmente, foi a de um homem negro: o açougueiro Cláudio Mandu da Silva, de 48 anos. Antes de falecer, ele trabalhou normalmente no Mercado da Produção, situado na parte baixa da capital alagoana, com os sintomas do novo coronavírus até a manhã do dia 9 de abril. Seis dias depois, já internado, o profissional não resistiu às complicações ocasionadas pelo vírus e faleceu.

Embora a partida precoce e abrupta de Mandu não tenha entrado para as estatísticas no que concerne à classificação do fator cor/raça nos boletins epidemiológicos divulgados diariamente pelo Centro de Informações Estratégica e Resposta em Vigilância em Saúde em Alagoas, uma vez que o setor passou a informar o recorte apenas em 07 de maio, sua morte revela que o número total de óbitos na população negra pode ser ainda maior.

Dados dos últimos boletins epidemiológicos divulgados pelo Centro de Informações Estratégicas e Resposta em Vigilância em Saúde (CIEVS/AL) — desde a inclusão do fator cor/raça — apontam que houve um número de óbitos maior da população preta e parda (raça negra) em relação às pessoas de raça branca.

Das 1.594 pessoas que perderam a vida para a Covid-19 em Alagoas, 1090 foram classificadas como pardas, 167 brancas, 52 identificadas como pretas e 285 óbitos não tiveram a cor divulgada.

Ao considerar a classificação do IBGE quanto à definição da raça negra — soma de pretos + pardos — a porcentagem de pessoas negras que faleceram do novo coronavírus fica em 71% dos óbitos totais, ou seja, 1.142 óbitos.

Desigualdade em todos os sentidos

A mestre em Saúde Pública e integrante do Núcleo de Saúde Pública da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Suely Nascimento, chama atenção que os números refletem, sobretudo, as dificuldades para executar desde o início da pandemia as medidas de isolamento social. 

“A frequência de casos confirmados também tem essa diferença significativa. Então, se a gente vai ter um número de casos confirmados, pressupõe-se  também a mesma lógica nos óbitos. No entanto, esse percentual muda um pouco em termos de recorte por mil habitantes. Podemos observar que na população alagoana pretos e perdas se encontram nos bairros de maior vulnerabilidade social e é justamente nesses espaços onde vamos perceber uma dificuldade maior com o principal elemento que todos os órgãos vêm sugerindo para prevenir o novo coronavírus: o ‘Fique em Casa’. Ele serve para muitos, mas tem uma outra quantidade bem maior que não consegue por dois motivos: primeiro por uma questão de sobrevivência econômica e segundo porque ficar em casa em condições inadequadas de convívio com uma família com muitos integrantes, em residências de lona e alvenaria, é difícil”, argumenta a mestre.

Nascimento, que trabalha com controle social, práticas integrativas e educação popular em saúde, também reflete os obstáculos no acesso à saúde dessa população. 

“Se tem um menor poder aquisitivo e reside nos bairros de maior vulnerabilidade social consequentemente são pessoas que irão utilizar o serviço de saúde. Então, quantas vezes a gente viu que o serviço público vem com dificuldades no atendimento? Claro, vem aumentando e se organizando mais em relação ao leitos, mas existe a demora na confirmação do diagnóstico somadas às dificuldades de cuidados com alimentação, higiene, questões básicas de imunidade aliadas ao acesso à saúde mais complicado, porque não vão ter plano ou assistência à saúde como deveriam ter… assim a gente vai realmente perceber um acometimento maior de adoecimento e óbito das pessoas de cor preta e parda em detrimento da cor branca”, ressalta.

O que diz a Sesau

A reportagem entrou em contato com a assessoria de comunicação da Secretaria de Estado da Saúde (Sesau/AL) para saber se o órgão estadual tem algum posicionamento oficial sobre a diferença no número de óbitos entre pessoas da raça negra em comparação com a raça branca e se a gestão estadual tem algum programa transversal desenvolvido neste momento.

A assessoria respondeu apenas o segundo questionamento. Confira abaixo:

“Em relação às ações da Secretaria de Estado da Saúde, são programas gerais para a conscientização e atendimento da população que esteja infectada pela Covid-19”.

Jean Albuquerque

Jornalista, escritor e estudante de Letras na Ufal. Editor do site O que os Olhos Não Veem. Colabora com o site Negrê, correspondente em Maceió, do Portal Lunetas. Acredita no jornalismo independente, pautado pela diversidade e pelos direitos humanos.

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