Professoras e alunos atingidos lidam com problemas emocionais enquanto tentam reconstruir suas histórias |
Nos primeiros minutos da conversa, a professora Emília Albuquerque, 57, que por mais de 15 anos esteve à frente da Escola Municipal Padre Brandão Lima, no Pinheiro, fez, com a voz embargada, um apelo: “por favor, não me faça chorar mais”. Há três anos, quando soube que as consequências do crime ambiental cometido pela Braskem chegariam até o seu local de trabalho, um clima de apreensão e tristeza tomou conta de sua vida. Nos corredores da tradicional escola viu gerações de alunos se formarem. Das bancas dali saíram bons professores, enfermeiros, advogados, médicos e, antes de tudo, “filhos e filhas”.
Em um curto período de tempo, a educadora teve que lidar com a perda repentina de sua casa e do local de trabalho, afetados pela instabilidade do solo. Foram mais de três anos longe de um ambiente escolar verdadeiramente acolhedor. Apenas em 06 de abril de 2022 houve a entrega da “nova Padre Brandão Lima”, localizada no Benedito Bentes, parte alta da capital alagoana, distante 14 km da antiga.
Embora considere um marco para uma tentativa de recomeço, o novo espaço nada se compara ao ‘original’. Faltam as histórias, os professores e, principalmente, dezenas de alunos que, com a mudança de endereço, tiveram que transferir a matrícula para outra unidade de ensino.
A história da Brandão Lima é marcada pela resistência. A diretora costuma classificar a unidade escolar como itinerante. Além da última mudança para a parte alta de Maceió, distante do Centro da cidade, o educandário já passou por, ao menos, outros dois processos de realocação e tenta, como sempre, das cinzas, ressurgir.
“O desespero nosso como gestão era imenso e não tinha como apelar. Ficamos até março de 2019 sem saber ainda qual rumo iríamos tomar. Foi quando nos mandaram para a Serraria, para dividir um prédio. De dois turnos, passamos a funcionar apenas pela manhã. E a escola do bairro da Serraria – que não tinha nada a ver com o problema – deixou de funcionar no turno da manhã, para funcionar apenas pela tarde e noite. Foi traumatizante”, relembra a educadora.
O dia oficial da entrega do novo imóvel foi marcado por muita emoção. As lágrimas de Emília durante o evento pareciam resumir bem a frase pichada em alguns muros dos bairros afetados pela mineração, em Maceió: “Braskem, quanto vale o sal de nossas lágrimas?”.
“É difícil a gente falar sobre isso. Mentalmente, a gente faz questão de esquecer um pouco para seguir em frente. É como se tivessem feito o seguinte: pegue um monte de papel, corte-o e jogue ao vento para frente. Vai cada um para um lado. Então, nossa saúde mental foi muito afetada. A educação lida com fases de desenvolvimento, e a Braskem cortou isso dessas crianças. A Brandão Lima tinha uma história e a Braskem a afundou. Cada transferência que a gente dava, ficava imaginando: o que vai ser dessa criança? onde ela vai estudar? Danos de aprendizado e emocionais incalculáveis”, argumenta a diretora.
A foto abaixo mostra o momento em que Emília encontrou Josinete Andrade. Há anos, filhos e netos de Andrade frequentam a Brandão Lima. Agora que a família se mudou para o Benedito Bentes, a filha caçula conseguiu voltar a estudar na unidade. Ela é a única estudante dentre os antigos alunos.
“Minhas filhas e netos gostavam muito da escola, da merenda, das professoras e aprenderam muito lá. Quanto à diretora Emília, eu não tenho o que dizer, sempre muito cuidadosa”, destacou Josinete Andrade na época da inauguração.
A poucos metros da Padre Brandão Lima, no Pinheiro, ficava a Escola Bom Conselho, onde Ewerton do Rosário Leite estudou a vida inteira. Ao longo desse período, construiu laços de amizade com os funcionários da escola. Foram esses funcionários que o incentivaram a se dedicar para conseguir ingressar no ensino superior.
Quando as aulas acabavam, saia para lanchar no Pastel da Maria, situado na Praça Lucena Maranhão, a principal do bairro Bebedouro, que agora parece um cenário de guerra provocado pela realocação. Era na praça que alunos das escolas das redes pública e privada se encontravam, todos os dias, sempre às 12h, para jogar conversa fora, trocar contatos e ainda tocar pagode. O Bom Conselho era a referência da região. A partir dele, o bairro ganhava forma e vida com os desfiles das bandas fanfarras, a realização dos jogos internos e gincanas, dentre outros eventos ao longo do ano.
“Quando passo de ônibus no horário que, de costume, aconteciam esses encontros, me traz muitas lembranças. Hoje não vejo mais as bancas de revistas que a gente frequentava, não tem mais nada. Acredito que o principal dano que a empresa trouxe foi esse: o fim da troca entre essas pessoas, porque Bebedouro é um bairro que sempre foi muito movimentado, tanto pelo comércio, pela cultura, enfim, e hoje você não vê mais nada disso”, lamenta o jovem.
Para o universitário, o crime ambiental cometido pela Braskem destruiu a memória afetiva das pessoas.
“Tenho um amigo que estudou apenas um ano no Bom Conselho e a saída dele daquele bairro e daquela escola é algo que faz ele chorar sempre que passa por ali, porque foi expulso do lugar onde ele pertencia. A Braskem é a responsável por destruir essas memórias. A Braskem pode até ter indenizado financeiramente essas pessoas e acha que, com isso, já fez tudo, mas a memória é algo impagável”, argumenta Leite.
Esse mesmo sentimento é compartilhado pela professora Eunice Novaes, 51, que ensinava sociologia na Escola Estadual Rosalvo Ribeiro, em Bebedouro. Hoje, ela trabalha em uma escola do Centro Educacional de Pesquisas Aplicadas (Cepa), mas os laços de outrora com alunos e parte dos professores foram perdidos. No bairro, era comum encontrar pais e mães de alunos trabalhando como feirante ou como funcionários de estabelecimentos comerciais e postos de saúde da região. Essa relação próxima faz a professora viver um certo estado de luto pela perda de sua rotina com a sua comunidade. Assim como Emília Albuquerque, sua casa também foi afetada, gerando um duplo trauma.
“Antes mesmo da Defesa Civil definir o futuro das escolas, muitos alunos já tinham pedido transferência. Dispersando totalmente e assim as perdas passaram a ser sentidas. Inclusive, desenvolvemos um projeto de redação para abordar o tema. Foi sofrido e, cada vez mais, nos envolvemos com a situação. A gente já chegava na escola e via as rachaduras e começava a perceber a dimensão do problema”, recorda a socióloga.
A professora também relembra que o clima de tensão e ansiedade dominava os corredores da Rosalvo Ribeiro com o surgimento de notícias sobre o problema ou a especulação sobre novas atualizações do mapa da Defesa Civil.
“À época só se falava em colapso das minas. Fizemos várias reuniões para poder discutir como lidar com as notícias sobre boatos dos poços de sal colapsando. Era muito medo que dominava. Foi doloroso.Cheguei a ir ao psicólogo. Todo mundo foi afetado. Um dia desses encontrei uma aluna que cursou até o segundo ano do ensino médio e me confessou o quanto foi triste não fechar esse ciclo”, comenta Novaes.
A psicóloga clínica Clarissa Gomes, 29, especialista em saúde mental com foco na população negra e pacientes enlutados destaca que todo o clima de incerteza gerado pelo crime ambiental pode ter causado grande angústia às pessoas que moravam, estudavam e também frequentavam os bairros. Ela explica, ainda, sobre os danos à saúde mental dos alunos e dos profissionais das escolas que foram atingidos pelo afundamento do solo, diante da carga emocional envolvida nesse tipo de mudança brusca.
Para ela, as pessoas afetadas tiveram que lidar com problemas emocionais, que trazem como consequências os transtornos de ansiedade, depressivos, transtorno de estresse pós-traumático, transtorno de estresse agudo a curto, médio e longo prazo. “O trauma pode afetar a memória trazendo as lembranças de forma repentina, com a lembrança vem também a carga de sintomas que a situação despertou. Esse é o maior risco: reviver o trauma. E esse é o principal objetivo do tratamento psicológico: promover formas de enfrentamento que dêem um novo sentido à situação vivida”, ressalta a especialista.
O doutorando em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Adson Ney Amorim destaca as consequências da mudança forçada dos alunos e professores para identidade cultural desses grupos e como esse impacto atinge, principalmente, crianças e adolescentes em formação.
“Pensando que as identidades são produtos de experiências coletivas, talvez seja difícil falarmos em perda de identidade de pessoas ou populações. Como as identidades são expressões simbólicas dessas experiências, elas são maleáveis. Há um grande impacto, é claro, que os deslocamentos forçados produzem na construção das identidades, na medida em que eles reconfiguram abruptamente as experiências comunitárias. Para as crianças, que estão vivendo um primeiro momento de socialização fora do universo familiar, essa mudança abrupta pode implicar ainda em mais dificuldade”, pondera o especialista.
Para o sociólogo, de modo mais amplo, se por um lado essas rupturas podem produzir sofrimento e dificuldade de reconstruir laços, por outro, o próprio deslocamento forçado pode produzir sensos de identificação e pertencimento, importantes na organização política dos grupos afetados que estão em situação semelhante, como acontece com refugiados que, ao mobilizarem seus traumas comuns, conseguem se organizar para lutar por direitos.
“As identidades, além das dimensões simbólicas que falamos, também se alimentam e produzem expressões materiais dos símbolos, que podem ser representados, por exemplo, por construções arquitetônicas. Num processo parecido, as construções de ordem mais trivial podem ganhar a dimensão simbólica para um grupo de pessoas, na medida em que remetem a acontecimentos marcantes para aquele grupo. O desastre levado a cabo pela Braskem leva consigo uma parte significativa da história de Maceió, representada pelo patrimônio material, que nos remetia ao próprio processo de urbanização da cidade”, finaliza o doutorando.
Provocada pela reportagem sobre as consequências do crime socioambiental à educação, a Braskem informou que, em dezembro de 2020, assinou o Termo de Acordo Socioambiental com o Ministério Público Federal (MPF), com participação do Ministério Público do Estado (MPAL). Esse termo prevê recursos e tratativas nos aspectos sociais, ambientais e de mobilidade. Dentre as diversas iniciativas, a empresa estaria em tratativas com as autoridades para a estruturação de ações de desenvolvimento socioemocional com foco nos estudantes e educadores das escolas realocadas. A empresa não deu prazo para que essa ação seja executada.
Sobre esse assunto, a presidente do Sinteal, Consuelo Correia, chama atenção para as nuances e particularidades de uma possível tentativa de redução de danos aos alunos e professores afetados pelo crime socioambiental.
“Será que conhecem o que acontece por aqui? o que constitui um espaço educacional? Quais são os atores que estão no espaço da escola? Quais são as dores desses profissionais e estudantes que se sentem hoje desagregados das suas relações de aprendizagem e das duas relações afetivas? Então uma coisa é eu construir essa ambiência e ter o pertencimento, outra é um grupo que vem de fora fazer uma pesquisa”, finaliza a sindicalista.
A pauta desta reportagem foi selecionada pelo 4º Edital de Jornalismo de Educação, organizado pela Associação de Jornalistas de Educação (Jeduca), com apoio do Itaú Social.
Créditos das fotos: Josian Paulino, Chico Buarque, Ascom Sinteal, Dilma de Carvalho/Projeto Ruptura.
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