Maceió conta com mais de duas mil câmeras de videomonitoramento que foram anunciadas como reforço para a segurança pública
Por Felipe Ferreira
A capital alagoana está mais vigiada que nunca. Maceió conta com mais de duas mil câmeras de videomonitoramento que, de acordo com as forças policiais, foram implementadas para reforçar a segurança pública e auxiliar na elucidação de crimes. A instalação desses equipamentos, tão comemorados por alguns setores, deve manter a mira da Polícia na população preta.
A quebra de braço entre o governador Paulo Dantas (MDB) e o prefeito de Maceió, JHC (PL), em torno de ações na segurança pública da capital visando a eleição de 2026, tem deixado de lado debates essenciais em torno da problemática envolvendo o reconhecimento facial.
Por outro lado, experiência em outras cidades do país, locais o qual o equipamento não mostrou total eficiência e ainda reconheceu pessoas de maneira errônea, não foi levada em consideração pelo poder público alagoano.
A reportagem do Olhos Jornalismo conversou com a vice-presidente da Comissão de Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Alagoas, Synthya Maia, sobre as implicações do videomonitoramento com reconhecimento facial para a população preta.
A advogada aponta que a falta de regulamentação para o uso de reconhecimento facial, além das preferências pessoais do programador desses equipamentos, podem perpetuar o racismo estrutural.
“A subjetividade do programador está ligada ao funcionamento e a capacidade que a tecnologia tem de reproduzir o racismo. Uma vez que esses algoritmos são criados por seres humanos, as limitações e perspectivas desses programadores podem sim ser incorporadas nas fórmulas desses algoritmos, e esses vieses sem críticas e o devido aprimoramento, sem a devida transparência, vai, na verdade, marginalizar ainda mais as pessoas negras”, disse.
A tecnologia não é neutra
Synthya Maia explica que a base de dados utilizada para o reconhecimento de suspeitos pode conter informações com viés racista, além de frisar que a tecnologia não é neutra.
“É uma tecnologia que visa o tratamento de informações da face, então o que eu faço é a biometria da face através dos pontos nodais. É importante saber que, durante este processo, se usa uma base de dados nacionais de mandados de prisão que é mantida pelo CNJ e juntamente com bases regionais que são gerenciadas pelas autoridades policiais estaduais”, diz.
A advogada explica que a base de dados utilizada pelas câmeras de reconhecimento facial inclui informações de pessoas procuradas e desaparecidas, e essas imagens são comparadas com registros capturados em locais públicos. Embora a tecnologia seja considerada “neutra” e prometida como uma ferramenta eficaz no combate à criminalidade, ela destaca que, na prática, o efeito é inverso.
Descriminação Algorítmica Racializada
De acordo com a especialista, a prática racista atrelada à tecnologia é conhecida por “descriminação algorítmica racionalizada”. Os equipamentos, a depender do treinamento e preparo de seus programadores, podem reproduzir comportamentos preconceituosos.
“Os algoritmos de tomada de decisão automatizadas ou um sistema de inteligência artificial, por exemplo, vão demonstrar preconceito, ou viés racial, ou tomar decisões ou fazer recomendações porque eles são projetados para processar dados e fazer escolhas que são parciais e que vão acabar refletindo preconceitos raciais que podem estar presente nesses dados de treinamento e nas regras de programação desse sistema. Quando eles são implementados sem pensamentos ou perspectivas críticas, como a aplicação de lei, vigilância, esses vieses podem resultar em descriminação e danos desproporcionais às comunidades minoritárias”, avalia a advogada.
Discutir o tema é necessário
O histórico escravocrata do Brasil e o racismo estrutural que ocupa todos os setores da nossa sociedade faz com que a utilização desse tipo de equipamento, por mais que seja para o reforço na segurança pública, precise de debates aprofundados.
“O Brasil é um dos países desiguais do mundo, já sabemos os índices e dados de criminalidade, mas também sabemos os índices de letalidade policial contra pessoas negras. Então, em um país como o Brasil, para aplicar uma tecnologia como essa se exige uma discussão muito mais aprofundada sobre o próprio uso da tecnologia, porque o racismo algorítmico vai se vincular à novas práticas de vigilância”, aponta a advogada.
População fica em segundo plano enquanto gestores medem força
O governador Paulo Dantas e o prefeito JHC vêm medindo força e marcando território com ações voltadas à segurança pública. O tema, de acordo com pesquisas recentes, é um dos principais fatores decisivos para o eleitor definir seu voto.
JHC deve sair candidato a governador de Alagoas em 2026 e tem aumentado os investimentos em segurança pública, mesmo que essa não seja uma pauta de interesse municipalista, e sim do governo do estado.
Maceió investiu mais de R$2 milhões para implementar mais de duas mil câmeras de segurança nas escolas municipais e unidades de saúde e outras 99 instaladas em vias da cidade pelo Departamento Municipal de Transportes e Trânsito (DMTT).
De olho no avanço de JHC na área de segurança, Paulo Dantas também reforçou o videomonitoramento da capital. A Secretaria de Estado da Segurança Pública (SSP), começou a operar cerca de 150 câmeras instaladas em diversos bairros das partes alta e baixa de Maceió.
Cada ponto de monitoramento conta com três ou quatro câmeras que, juntas, possibilitam uma cobertura de 360 graus durante 24 horas por dia e sete dias por semana.
É preciso regulamentar o reconhecimento facial
O uso dos dados coletados pelas câmeras de reconhecimento facial também chamam atenção para a falta de regulamentação. De acordo com Synthya, não há transparência sobre a destinação das informações obtidas por esses equipamentos.
“Nós temos um relatório da vigilância automatizada que mostra que além de não existir nenhuma regulação específica por meio de lei para o reconhecimento facial, não conseguimos ter acesso aos dados que me mostrem quais origem, quais foram os meios de aquisição dessa tecnologia, não sei qual é o conhecimento técnico das autoridades para manusear essa tecnologia, não tenho acesso a um relatório do impacto de proteção dos dados das pessoas que estão sendo monitoradas. Não tem como a gente ver se ela está sendo devidamente usada. Isso de neutralidade é um argumento que cai, porque esse mecanismo tecnológico em favor da segurança pública vem, na verdade, se constituindo como mais uma ferramenta de racismo “, diz Maia.
Reconhecimento facial nem sempre é eficiente
Uma rede de observatórios de segurança estudou, em 2019, violência e uso do reconhecimento facial como medida de segurança pública e política criminal em cinco diferentes estados do País, durante cinco meses.
Deste relatório, entende-se que a ideia de eficiência a partir da tecnologia não encontra respaldo: na Bahia, durante o carnaval, o sistema de reconhecimento identificou mais de 1.300 rostos, gerando 903 alertas, 18 mandados e prisão de 15 pessoas, ou seja, 96% das notificações foram inúteis.
Quanto ao perfil dos presos por reconhecimento facial, 87,9% dos suspeitos foram homens e 12,1% mulheres; já quanto à raça, 90,5% das pessoas eram negras e 9,5% eram brancas.
Sem debates com a sociedade civil antes da implementação desses equipamentos, defensores da igualdade racial temem a crescente vigilância e possíveis problemas que podem acarretar.
Synthya Maia, vice-presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB-AL, revela temor com a falta de transparência nesse processo de utilização de dados de reconhecimento facial.
“A vigilância que o Estado sempre impôs à periferia vai ganhar novos contornos através do reconhecimento facial, de câmeras de drones, por exemplo. Atrelado a uma ideia de que não há transparência nesse contexto das tecnologias digitais e da crença de que a tecnologia é neutra, tem esse perigo, tem essa falta de representação de pessoas negras nos conjuntos de dados, nos processos de análises utilizado”, disse.
Foto de capa: SSP/AL
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