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Caso Davi da Silva: a porta aberta de uma mãe que espera há seis anos pela volta do filho

Adolescente desapareceu em 2014, após uma abordagem da PM-AL

Texto e fotos* de Dayane Laet – Especial para o Olhos Jornalismo

“Ele me pediu a bênção, tomou café e saiu de casa dizendo que voltava logo”, recorda a vendedora de verduras Maria José da Silva, ao falar do filho Davi da Silva, desaparecido desde 2014, após ser levado por uma guarnição policial do conjunto Cidade Sorriso, bairro Benedito Bentes, periferia de Maceió. “Minha porta fica aberta porque ainda sonho em ver Davi chegando com vida. Terei esperança até o dia que eu souber o que realmente aconteceu”, afirmou a senhora de 63 anos.

Visivelmente abatida e com dificuldade de assimilar as palavras por conta da medicação que controla problemas cardíacos, dona Maria José conversou com a reportagem por videochamada, usando o celular de uma das filhas, Carla. Ela estava na sala de uma de suas vizinhas, no conjunto Moacir Andrade, que também fica no complexo habitacional do Benedito Bentes.

“Davi completa 23 anos hoje”, revelou com a voz embargada. “Sinto tanta saudade. Queria desejar felicidades e dar a bênção da mãe”, disse chorando. Do outro lado da chamada, a repórter também chorou.

Com a porta aberta, Maria espera há seis anos a volta do filho Davi

Natural de Colônia Leopoldina, município localizado na Zona da Mata alagoana, dona Maria José é filha do casal de roceiros Maria das Graças e Isidoro. “Meu pai morreu quando eu tinha 7 anos, e desde então passei a ajudar minha mãe, que além da roça, fazia faxina para cuidar de mim e dos meus irmãos”, explicou a feirante. “Tenho um bocado de irmãos, quatro vivem por perto”, tentou puxar pela memória um número próximo de parentes, mas não conseguiu. Dos quatro filhos de Maria José, Davi era o caçula. “Ele nasceu perto dos meus 40 anos, depois que conheci Cícero Lourenço”, relembrou citando o nome do pai do adolescente, também feirante.

No dia do desaparecimento, a vendedora de verduras recorda que acordou cedo, como de costume, e Davi em seguida. Cheirou a cabeça da mãe (carinho comum entre os alagoanos) e tomou café. “Era perto das 8h quando ele me pediu a benção e saiu para falar com um amigo”, recorda. “Depois chegou alguém dizendo que uns policiais tinham colocado ele dentro da viatura, lá no Cidade Sorriso, e saído em direção ao Aprígio”, relembrou. Cidade Sorriso e Aprígio Vilela são outros dois conjuntos habitacionais populares que ficam na mesma região, só que em uma área um pouco mais descampada.

“Larguei tudo que estava fazendo, peguei a certidão de nascimento do Davi e segui na direção que me indicaram. Fui ao posto policial do Aprígio, fui ao quinto Batalhão, Central de Flagrantes e falei com todo mundo que encontrei pela frente. Ninguém sabia do meu filho”, relembra. Nesse momento, a voz de dona Maria sumiu, dando lugar às lágrimas. “Anoiteceu e eu na rua, sem comer nem beber. Ali meu calvário começou e nunca mais eu tive paz na vida”, conseguiu dizer, chorando.

Repercussão à época

Protestos foram realizados e o desaparecimento chamou a atenção da imprensa, que passou a acompanhar o caso. Dias se passam e mesmo angustiada, Maria José resolve retomar a venda de coentro em uma banca no conhecido Mercado da Produção, que fica na região central de Maceió. Quase três meses após o desaparecimento, a feirante foi atingida por uma bala perdida enquanto aguardava o ônibus, na volta para casa. “Até hoje tenho a bala alojada na cabeça. Escapei por milagre”, diz. “Mas milagre mesmo seria reencontrar meu filho com vida. Nem Raniel, que estava com ele, escapou”, acrescentou, com o olhar perdido.

Segundo o Ministério Público Estadual (MPE/AL), em 25 de agosto de 2014, Davi e seu amigo, Raniel Victor Oliveira da Silva, também de 17 anos, foram abordados e revistados por militares do Batalhão de Radiopatrulha no conjunto Cidade Sorriso. Ainda segundo o MPE/AL, a abordagem teria sido feita com emprego de violência e grave ameaça, causando-lhes sofrimentos físicos e mentais, em plena via pública. Os policiais militares envolvidos foram identificados como Eudecir Gomes de Lima, Carlos Eduardo Ferreira dos Santos, Victor Rafael Martins da Silva e Nayara Silva de Andrade.

Considerado a principal testemunha do desaparecimento, Raniel Victor contou à Polícia Judiciária que durante a abordagem os policiais encontraram dois “saquinhos de maconha, um saquinho com cada um” e, após essa revista, os policiais o liberaram, mas não a Davi da Silva. Ainda segundo testemunho de Raniel, Davi foi algemado e colocado na mala da viatura. Os policiais disseram que dariam uma volta com o adolescente e que depois iriam liberar o mesmo, porém, essa liberação nunca aconteceu.

Raniel Victor foi morto a tiros em 24 de novembro de 2016, no Benedito Bentes, logo após pedir para sair do Programa de Proteção à Testemunha (PPT). Ele tinha 19 anos.

Antes de ser morto, Raniel relatou em depoimento que acreditava que a prisão de Davi ocorreu porque os policiais envolvidos queriam que ele e o amigo confessassem ser ou informassem onde poderia ser encontrado o ‘Neguinho da bicicleta’, um traficante procurado pela polícia. Como ambos negaram conhecer o criminoso, Davi, diante da pressão dos militares, deixou cair a maconha que estava nas mãos e foi repreendido pela PM Nayara, que se sentiu ofendida e perguntou ao adolescente se ele achava que ela era uma ‘cachorra’, momento em que Davi fora algemado e posto na mala da viatura.

Raniel também contou que foi agredido fisicamente pelo PM Eudecir com golpes em suas partes íntimas, enquanto os outros acusados assistiam, apoiando a atitude do militar ao invés de impedir a ação violenta.

Após a exibição de fotos e vídeos dos militares que trabalhavam naquela área no dia do crime, os envolvidos foram reconhecidos por testemunhas e negaram participação no crime. Diante disso, o MPE/AL ingressou com uma representação criminal pela quebra de sigilo dos dados telefônicos dos terminais pessoais, pertencentes a guarnição citada. Autorizada pela Justiça, a diligência foi realizada e os dados foram fornecidos pelas operadoras de telefonia e ficou constatado que Nayara recebeu uma ligação no dia 25 de agosto às 09h40 e que Eudecir efetuou três chamadas, na mesma data, ambos, nas proximidades do local do crime.

Mesmo sem encontrar o corpo de Davi, os policiais envolvidos foram denunciados por tortura, assassinato e ocultação de cadáver. O caso segue na 14 ª Vara Criminal da Capital, em segredo de justiça. Leia mais aqui.


A carne mais barata é a preta

Pardo, magro, bermuda, camiseta, boné, altura mediana. Esta é a descrição de grande parte dos jovens que vivem nos bairros mais populosos de Maceió e Davi não era diferente do padrão. Em 2014, ano em que o filho de dona Maria José desapareceu, 1310 jovens pretos ou pardos com idade entre 15 e 29 anos (1176 do sexo masculino e 67 do sexo feminino) foram assassinados em Alagoas, de acordo com o Atlas da Violência, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Ainda segundo o relatório, no mesmo período o Brasil alcançou 29,8 mortes intencionais por 100 mil habitantes, incluindo assassinatos, latrocínios e morte em decorrência de intervenção policial. (Veja mais dados relacionados ao Atlas clicando aqui).

Envolta de imagens da Igreja Católica, Maria olha atenta para foto do filho desaparecido

Já em 2020, ao falar sobre sua rotina limitada pelo coronavírus e das dificuldades que encontrou após ser baleada, Maria José da Silva conta que já tentou ter acesso ao benefício do INSS por sua condição frágil de saúde por duas vezes, mas teve os pedidos negados. “Tenho sobrevivido com a ajuda da minha família. Nem vender no mercado eu posso mais, por conta dessa pandemia”, lamentou. O auxílio emergencial de R$600 concedido pelo Governo Federal tem sido a única fonte de renda da senhora.

Em casa, a porta aberta ainda aguarda a chegada do filho em seis de maio de 2020, dia em que ele completaria 23 anos. “Domingo agora é Dia das Mães e tudo que eu queria era que meu filho entrasse por essa porta e me abraçasse”.

Otimista, durante a entrevista dona Maria José se recusou a usar verbos no tempo passado para se referir ao filho. “Não tive direito ao luto. Não consigo ir adiante sem saber onde ele está ou onde deixaram meu menino”, lamenta, repousando o olhar na porta, que permanece aberta.

*A jornalista seguiu todas as recomendações de segurança sanitária estabelecidas pelos órgãos de saúde pública para a cobertura fotográfica desta reportagem.

Olhos Jornalismo

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