Especial - Educação de Maceió afundando

30 de novembro de 2022

Quatro anos após tremor de terra, alunos de escolas evacuadas continuam recebendo conteúdo pelo Whatsapp

Três unidades de ensino da educação infantil e fundamental de Maceió não voltaram às atividades presenciais |

Por Géssika Costa e Jean Albuquerque
Produção: Paula Berle

Com o olhar distante, a promotora de vendas Deidjan Lins, 43, que está desempregada, tenta ensinar o bê-a-bá à Maria Fernanda, que hoje tem 4 anos, em seu lar. Embora esse tipo de conteúdo pedagógico não seja direcionado para a idade da filha caçula, a mãe conta, aflita, que precisou colar o alfabeto na parede da sala de sua casa para tentar estimular a pequena, após quase dois anos sem estudar.  “A gente ensina, eu e meu esposo, as vogais, os numerais, as palavrinhas. Para que ela possa juntar, trabalhar a coordenação motora”. 

O Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) Luiz Calheiros Júnior — umas das unidades de ensino afetadas pelo crime ambiental cometido pela Braskem, em Maceió (AL) — onde Maria Fernanda deveria passar o dia com atividades recreativas, precisou ser realocado em 2019, período anterior à pandemia do coronavírus. Apesar da rede municipal ter retornado às aulas presenciais em fevereiro de 2022, a unidade responsável por ofertar educação infantil seguiu sem retornar às atividades, o que fez com que  a  filha de Deidjan fosse afetada duplamente, pela pandemia e pelo maior crime ambiental em área urbana do mundo.  

Ela conta que matriculou a filha em uma escola de bairro para que a pequena não ficasse mais um ano sem estudar. “Ela pedia muito para ir à escola: ‘mãe, eu quero estudar’, e isso cortava o meu coração, aí a gente colocou ela em uma escolinha de bairro, porque criança nessa idade precisa interagir, eles precisam ter essa troca, de contato entre eles”, defende. 

A promotora de vendas, Deidjan Lins, 43, tenta ensinar Maria Fernanda, que hoje tem 4 anos (Foto: Arquivo Pessoal)

A promotora de vendas afirma que, durante  os dois anos em que sua filha não teve aula, recebia da Prefeitura apenas um kit da agricultura familiar, que contém leite em pó, um abacaxi, bananas, batata doce e açúcar. São alimentos vindos de pequenos produtores no Estado, com uso reduzido ou nulo de agrotóxicos. 

“Nunca houve aula, sequer uma tarefinha online pra criancinha fazer, nem um parabéns no dia das crianças. Nenhuma mensagem de final de ano, está entendendo? A minha filha estava matriculada no maternal I. Ano passado, os pais foram convocados para renovar a matrícula. Então, eu fui pra garantir a vaga. Tanto que eu questionei, ‘mas vocês sabem que ela está passando para o maternal dois sem colocar o pé em uma sala de aula, nem sequer saber quem é o nome da professora’”, relata. A afirmação de Deidjan é contrária ao que diz a Semed sobre as atividades remotas. 

APELO

Com a situação incerta, alunos da Escola Radialista Edécio Lopes participaram em abril deste ano de uma manifestação batizada de “Aula na Calçada”, realizada na sede da Secretaria Municipal de Educação. O objetivo era pressionar a Prefeitura de Maceió a cumprir os acordos para a relocação da unidade de ensino. Após meses do protesto, o problema continua. Os alunos seguem tendo atividades remotas entregues via aplicativo de mensagem e o Município se detém a informar que o processo de aquisição de um novo prédio está em andamento e depende de trâmites jurídicos. 

Durante o protesto, o Sindicato dos Trabalhadores da Educação (Sinteal) ouviu os estudantes. A aluna da Escola Edécio Lopes, Mykaela Josefa, reclamou e pediu a volta das aulas presenciais. “Estou me sentindo triste, muito triste, porque eu preciso estar na escola, não gosto de estudar online. É muito chato não conhecer os coleguinhas, as professoras. Eu quero ter aula presencial”, disse. 

A queixa de Mykaela foi a mesma do aluno Davi Ferreira. “Muito difícil tem que ficar às vezes perguntando para professora porque a internet está muito lenta. É melhor presencial que a gente consegue entender melhor. Já Daniel Augusto cobrou uma solução para o problema, “que alugue o prédio para a gente estudar, para a gente ter a educação, ter os coleguinhas”.

Consuelo Correia, professora da rede municipal de ensino desde 1988 e presidente do Sinteal, vem acompanhando o processo de aquisição de conhecimento das crianças há anos e comenta que a aprendizagem e as relações afetivas que se constroem em uma comunidade são relevantes para o crescimento cognitivo do alunado. “Se estabelecem laços com a comunidade, com os estudantes, com os pais, e isso tem um peso muito grande no aprendizado. Para além da destruição física do ambiente, se destruiu todos esses laços”, defende. 

Ela relembra que além do problema do afundamento do solo, os estudantes das escolas do bairro sofreram duplamente com a pandemia. Ainda de acordo com Correia, a entrega de novas unidades de ensino não resolve ou repara os danos à educação.

“Boa parte dos alunos não tinham aparelho eletrônico, o que trouxe grandes impactos educacionais e danos psicológicos, tanto para os trabalhadores como para os estudantes. Em meio a essas questões, muitas crianças não retornaram para as escolas e, com a pulverização causada por essas mudanças sistêmicas, não sabemos onde muitas delas estão. Há casos de escolas que ficavam no Cepa e que foram transferidas para bairros distantes, como o Cruzeiro do Sul, e até para outras cidades, como a Escola Estadual José Correia da Silva Titara, que foi realocada para Marechal Deodoro. Então, como transferir essas comunidades daqui para lá? Claro que eles não foram, o que trouxe grandes impactos para esses estudantes”, indaga.

Consuelo Correia, presidente do Sinteal (Foto: Paula Berle/Olhos Jornalismo)

Escolas afetadas

Dos 18 prédios afetados, três do município permanecem sem aula presencial, causando prejuízo ao futuro e descumprindo o direito humano à educação de qualidade a 531 estudantes. São eles: o CMEI Luiz Calheiros Júnior, anteriormente localizado no bairro Pinheiro, CMEI Vereador Braga Neto, no Bebedouro e Escola Radialista Edécio Lopes, também no Pinheiro.

Quatro anos após o crime ambiental, os alunos que antes da pandemia do novo coronavírus ficaram sem frequentar os prédios, precisaram assistir ao retorno das aulas presenciais da maioria das escolas de Alagoas e continuar estudando de maneira remota. As atividades e conteúdos são entregues por meio de blocos de atividades via WhatsApp. Neste grupo, estão crianças de até cinco anos que — contrariando estudos de especialistas em desenvolvimento cognitivo infantil — precisam fazer uso de telas para ter acesso ao direito à educação.

Em relação às escolas da rede estadual, a Braskem explicou, em comunicado enviado à reportagem que tem monitorado ações de reparo e manutenção nas unidades de ensino que estão localizadas nas áreas de monitoramento. Além de pontuar que está finalizando ampliações e adaptações em escolas que foram indicadas pela Secretaria de Estado da Educação, que estão localizadas fora dos bairros, para receber os alunos das escolas afetadas.

Enquanto isso, a gestão de João Henrique Caldas, o JHC (PL), prefeito aliado do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), informa apenas que o processo de aquisição de um novo prédio para a Escola Edécio Lopes está em andamento e depende de trâmites jurídicos.

Até o momento, apenas a Escola Municipal Padre Brandão Lima e a Escola Municipal Major Bonifácio Calheiros foram reinauguradas, em uma tratativa entre a Braskem e a Prefeitura de Maceió.

“Registre-se que nesses dois casos não houve utilização dos recursos da Ação Civil Pública do MPT. Na ação, a Braskem se comprometeu a pagar R$30 milhões para o Município de Maceió no sentido de dar andamento à construção dos equipamentos educacionais, que ainda não foram construídos, estando em andamento o processo licitatório”, argumenta a procuradora do Ministério Público do Trabalho, Rosemeire Lamarca. O recurso mencionado pela procuradora segue parado em uma conta judicial até que a Prefeitura de Maceió se manifeste.

Fora do âmbito do acordo com o MPT, segundo a Braskem, também foram disponibilizados em abril de 2021 mais R$ 5 milhões para os custos de realocação temporária, além de assessoria para o apoio na busca de novas escolas.
Já as unidades da rede estadual realocadas estão em prédios alugados, e, conforme a Secretaria de Estado da Educação (Seduc), todos os gastos estão sendo contabilizados para tratativa final com a Braskem.

Provocada pela reportagem do Olhos Jornalismo, a Secretaria Municipal de Educação (Semed), sem detalhar datas, informou que o CMEI Luiz Calheiros Júnior e CMEI Vereador Braga Neto estão com novos prédios em fase de obra, que deverão ser finalizadas e entregues em breve. 

Sobre as escolas da rede estadual, apenas seis delas, situadas na área 00 do Mapa de Ações de Linhas Prioritárias da Defesa Civil de Maceió, precisaram ser realocadas por causa dos problemas que foram causados pela mineração, são elas: Nossa Senhora do Bom Conselho, Alberto Torres, em Bebedouro; José Correia da Silva Titara e Vitorino da Rocha, no Centro Educacional de Pesquisa Aplicada (Cepa) e Cincinato Pinto, no Bom Parto.

De acordo com informações da Secretaria de Estado da Educação (Seduc/AL), a Escola Bom Conselho antes estava no bairro do Bebedouro e se mudou para a Chã de Bebedouro, cerca de 4 km de distância. A Alberto Torres, que também funcionava no segundo bairro mais antigo da capital alagoana, precisou ser transferida para a Gruta de Lourdes, aproximadamente 3,3 km de distância. Já a Cincinato Pinto e Vitorino da Rocha foram transferidas para prédios no bairro do Farol. Os estudantes das escolas do Centro Educacional de Pesquisa Aplicada (Cepa), o maior complexo educacional da América Latina, que comportava 11 escolas estaduais, foram transferidos para outras unidades de ensino dentro do próprio centro educacional.  

“Nenhuma das escolas afetadas está funcionando em sistema remoto. A Seduc garantiu o transporte dos estudantes para as unidades que precisaram ser realocadas por conta da ação da mineradora”, disse, em nota.

Para entender se existe alguma iniciativa direcionada a medir o impacto da realocação nos índices da educação de Alagoas, a reportagem procurou a Semed e a Seduc. O primeiro órgão não respondeu ao questionamento. Já a repartição estadual informou que não há qualquer dado ou estudos em curso acerca do dano causado na realocação, apenas estratégias de condução desses alunos, com modificações diretas nas rotas de transporte escolar oferecido pela Secretaria. Quanto às escolas da rede estadual que foram realocadas, ainda encontram-se em prédios alugados, ficando a cargo da Seduc o custeio. Ainda segundo a nota, tudo vem sendo contabilizado para realização de tratativa final junto à Braskem, a qual ainda encontra-se em curso.

PARTE VIVA, PARTE MORTA

A funcionária pública e educadora Joana D’arc, 60, que mora com a filha Maria Eduarda Cavalcante, 28, passou a vida inteira no Pinheiro e chegou a trabalhar no CMEI Luiz Calheiros Júnior, quando a unidade funcionava no bairro. “Eu fui morar lá por ser perto da minha escola, por ser um lugar mais seguro, assim como era meu apartamento. Também chegou a trabalhar em uma escola particular na região, a Príncipe da Paz, situada no Flexal de Baixo, em Bebedouro. Mas, tempos depois, perdeu o emprego, porque os moradores da localidade se mudaram. A região faz parte do bairro, mas não foi incluída no mapa da Defesa Civil, o que gerou um isolamento socioeconômico. Essa situação afetou quase mil moradores que sofrem com a falta de estrutura e acesso aos serviços básicos, como educação, saúde, segurança etc.

Na escola municipal, Joana continuou trabalhando, mas o prédio estava rachado e a Defesa Civil de Maceió recomendou a desocupação. A educadora foi afetada duplamente, além de sair do local de trabalho, teve que deixar o seu apartamento. “Como eu saí do meu apartamento de um dia pra noite, saí sem o aluguel [social], passei um ano sem. Depois me ressarciram e fui morar no bairro da Gruta. Na escola, botaram até maquinário pra ver se não tinha problema de explodir. Eu sei que mandaram a gente sair de uma hora pra outra e a gente saiu correndo”, recorda. 

Ela relembra que as crianças tiveram que migrar para outras escolas em outros bairros para continuar o ano letivo. Em relação ao crime causado pela Braskem, com a voz trêmula e os olhos marejados, ela conta que causou uma mudança brusca em sua vida. “Eu me criei e vivi com meus dois filhos que nasceram no bairro Pinheiro. Eu conhecia todo mundo. Eu sabia a rua que eu entrava, a rua que eu saía, quem eu ia encontrar no caminho. Eu era minha vida. Eu já recebi a indenização e comprei um lugar pra mim, não foi com o dinheiro da indenização porque o dinheiro não dava”.

Placa mostra ponto de encontro em caso de sinkhole, dentro do Cepa, espaço que concentra maioria das escolas afetadas (Foto: Paula Berle/Olhos Jornalismo)

A funcionária pública V. P, 41, que atualmente ocupa um cargo comissionado na Secretaria de Estado de Educação de Alagoas (Seduc-AL) e, por isso, preferiu não se identificar, trabalha no Centro de Estudos Aplicados (Cepa) há mais de 20 anos. Desde que os nomes das escolas do Centro passaram a ser arrolados ao problema, tudo mudou. Segundo ela, para quem ficou no local, a sensação é de instabilidade.

“Para mim, ficou uma parte morta e uma parte viva de um lugar que é parte da história de Alagoas. Vários governadores e outras pessoas de projeção relevante estudaram aqui e, hoje, olho esse espaço com uma sensação de que está morrendo. De um lado área 00, do outro, área 01. Ficamos confusos  e, de certo modo, com medo”, conta a educadora.

Fraturas: o impacto do crime ambiental na educação  

A professora da Educação Básica da rede pública municipal de Maceió e doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Nélida Silva explica que o afundamento de solo causado pela mineração da Braskem pode impactar, principalmente, o aprendizado das crianças da educação infantil.  

“Quando uma tragédia como o evento de causado pela mineração da Braskem acontece, ela primeiro desestrutura toda a primeira instituição de onde esses sujeitos aprendizes veem, ela desestrutura as famílias, o lar, o primeiro lugar de segurança, sendo assim, esses aprendizes já chegam à escola com as desigualdades aprofundadas, um primeiro obstáculo a ser superado, e para isso é necessário não só a ação da escola, mas de todas as outras instituições”, argumenta. Além das crianças, a especialista destaca que os profissionais da educação também sentem esses impactos. 

No estado com a maior taxa de analfabetismo do país, com 17,1%, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2021, a doutoranda ainda ressalta que aprender em meio a um cenário instável é um grande desafio para esses alunos. Segundo ela, essa realidade pode afetar a habilidade de concentração dos estudantes. “É esperado que esse desempenho diminua. Assim, se a educação pública do município de Maceió espera um melhor desempenho desses estudantes, é necessário que o Estado promova ações de reestruturação dessas famílias, apoio social e psicológico”, acrescenta. 

Sobre os estudantes ainda estarem tendo aula por meio de bloco de atividades no celular – no momento no qual todas as escolas voltaram ao presencial – a acadêmica reflete que as atividades remotas foram uma forma que as escolas encontraram a fim de manter as atividades educacionais no momento do auge da pandemia.

“Penso que no sentido de garantir a qualidade da educação ofertada pelo município, é urgente que os responsáveis públicos reestruturem as escolas. É de que se questionar, por que a demora no processo de reestruturação dessas escolas? Se existem elementos insubstituíveis ao presencial, esse atraso em providenciar local adequado está restringindo a aprendizagem dessas crianças a elementos possíveis de serem aprendidos pelo remoto, isso certamente pode prejudicar por exemplo o desenvolvimento da fala, coordenação motora fina e grossa, afetividade, dentre outros aspectos”, pontua.

A pauta desta reportagem foi selecionada pelo 4º Edital de Jornalismo de Educação, organizado pela Associação de Jornalistas de Educação (Jeduca), com apoio do Itaú Social.

Créditos das fotos: Josian Paulino, Chico Buarque, Ascom Sinteal, Dilma de Carvalho/Projeto Ruptura.