Nos últimos cinco anos, foram registradas 16 denúncias de discriminação religiosa no estado
Texto: Tais Albino
Fotos: João Arthur Sampaio
Idosos, adultos e crianças tocavam tambor e cantavam enquanto aguardavam a iyalorixá Nailza Araújo, conhecida como Mãe Nailza, participar de uma cerimônia individual com um dos filhos de santo.
De repente, um barulho forte contínuo chamou atenção de todos. A princípio ninguém conseguia identificar do que se tratava até a primeira pedra atravessar o telhado. Os cantos e os batuques foram aos poucos silenciados. O terreiro estava sendo apedrejado.
O episódio de intolerância, que ocorreu no dia 3 de março de 2018, na região metropolitana de Maceió, ficou conhecido como a “chuva de pedras no terreiro de Rio de Largo”. No momento do ataque, cerca de 20 pessoas estavam no terreiro da Comunidade Tradicional de Matriz Africana Ilê Nife Omo Nije Ogba, localizada no conjunto Cruzeiro do Sul.
De acordo com relato do pai pequeno Nicksson Correia, os frequentadores foram retirados do local por segurança. Na manhã do dia seguinte, os coordenadores da comunidade subiram no telhado do templo religioso e encontraram mais pedras e pedaços de ossos de animais. Muitos desses materiais estavam grudados em várias pedras com fita adesiva, numa espécie de bola para ser jogada.
“Foi uma cena de terror. Se as crianças tivessem noção do que houve, hoje não estariam mais lá. Ficamos com medo do que poderia acontecer quando fizéssemos uma festa aberta”
Assim como o Quebra do Xangô de 1912 – um dos episódios mais violentos ocorridos contra o povo de santo no país – quando uma milícia paramilitar invadiu e quebrou terreiros em Alagoas, o ataque teve início por volta das 20h e durou até a madrugada. No desespero, alguns praticantes saíram para chamar atenção dos vizinhos e tentar localizar os autores. Ao chegarem à rua que fica por trás do terreiro, não encontraram ninguém. O fato leva a pensar que as pedras e ossos de animais podem ter sido jogados do quintal de alguém.
“Na época, acho que foi o delegado que disse que iria chamar todos os vizinhos para averiguar, mas até agora não tivemos retorno sobre as investigações. Para se ter uma ideia, com medo de represálias, nossas cerimônias não passam das 22h”, relembrou Nicksson.
Como o local é rodeado de igrejas neopentecostais, é comum ouvir através das paredes alguns pastores se referirem à comunidade como templo do demônio. Antes da ‘chuva de pedras’, a casa havia sido alvo de pessoas que jogavam fogos de artifício e até ovos nas paredes do templo religioso.
O caso do ataque ao terreiro da Mãe Vera, no bairro da Cidade Universitária, em Maceió, é mais um que se soma ao número das manifestações de ódio contra as religiões de matrizes africanas e continua sem solução. Na madrugada do dia 13 de maio do ano passado, após tentar invadir o local sem êxito, um grupo criminoso quebrou diversos objetos utilizados em cerimônias que ficavam expostos em frente à casa.
Mesmo após dez meses do ocorrido, Veronildes Rodrigues da Silva, a Mãe Vera, se lembra do som das gargalhadas dos autores no momento do ataque. Apesar de não residir no local, ela conta que no dia do fato improvisou duas cadeiras para deitar durante a noite e só se levantou após ouvir o barulho das louças e atabaques religiosos sendo quebrados. Os netos dela também estavam presentes.
A ação ocorreu dias após ela receber a informação que seria homenageada pela Câmara Municipal de Maceió com a Comenda Dandara – honraria entregue a pessoas que contribuíram na luta pela diversidade étnico-racial na capital alagoana.
“É aquela coisa, né? É casa de preto, religião de matriz africana. A gente já luta para sobreviver. A gente não luta para o povo gostar da gente, a gente luta para ser respeitado”, defende Mãe Vera.
Depois de registrar um boletim de ocorrência, a iyalorixá procurou mais uma vez a Polícia Civil e recebeu a informação que as investigações estavam em andamento. Assim como no caso da Mãe Nailza, nunca teve retorno.
“Quem quebrou se cortou, mas não tinha polícia para pegar aquele sangue e fazer um teste. Ficou o dito pelo não dito. A única coisa que o escrivão chegou para me dizer é que eu morava em uma área de alto risco. Não, eu não acredito. Eu atribuo à intolerância religiosa”, afirmou.
“É preciso constranger o agressor”
Ao mesmo tempo que sente que a injustiça pode ajudar a alimentar novos crimes, o pai pequeno Nicksson Correia espera que o terreiro não seja atacado novamente.
“Não tivemos uma resposta pelo ato. Seria muito bom ser revelado quem foi, para que os demais repensem por medo de serem presos ou de alguma multa. Conversar sobre o assunto ajuda, mas a punição é mais eficaz”, avalia.
O mestre em Sociologia e graduado bacharel em Ciências Sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Carlos Martins, acredita que é preciso reconhecer judicialmente os casos de intolerância religiosa como crime de racismo.
Para ele, o processo de educação precisa ensinar o que é e quando ocorre o racismo, além de contar a história do país numa perspectiva mais abrangente quanto aos assuntos sobre as relações étnicos-raciais.
“É preciso constranger o agressor. A pessoa precisa entender que cometeu um erro e agora está tomando uma surra moral. O brasileiro tem vergonha de falar que existe racismo e assim há um mal-estar com o assunto”, ressalta Martins
Carlos Martins credita os episódios de preconceito sendo o único elemento cultural da África que não foi assimilado, ressignificado e embranquecido no Brasil, ao contrário, por exemplo, dos blocos de carnaval e da capoeira.
“O que produz essa violência e dá legitimidade é esse discurso de que as religiões de matriz africana são do mal, do demônio, do inimigo. Todo esse discurso vai produzindo ódio e legitimando ações de violência. A cultura cristã é a cultura da violência. O cristianismo reivindica o legítimo e o puro e, em nome dessa pureza e santidade, ele sai destruindo tudo que tem pela frente”, argumenta o sociólogo.
Sem informação
Para saber do andamento das investigações sobre os dois casos, a reportagem procurou a assessoria de imprensa da Polícia Civil de Alagoas (PC-AL) que, por sua vez, pediu que o assunto fosse apurado junto a uma delegacia que está cuidando das duas ocorrências.
Os ataques citados acima foram registrados no 10º Distrito Policial, localizado no bairro da Cidade Universitária. Em dias e horários alternados, a reportagem tentou falar com o delegado responsável pela delegacia, Alcides Andrade de Alencar, mas não obteve êxito.
Em contato com O Que Os Olhos Não Veem, um escrivão identificado apenas como Cícero, do 10º DP, disse acreditar que o inquérito relacionado à Mãe Nailza foi concluído, mas não tinha mais informações ou detalhes sobre. Já em relação ao inquérito que investiga o ataque ao terreiro da Mãe Vera, o escrivão acha que ele sequer chegou a ser aberto.
Pela Liberdade de Culto
Após o ataque no mês de novembro do ano passado, o Tribunal de Justiça de Alagoas (TJAL), em parceria com a Defensoria Pública do Estado, lançou o Projeto Caravanas em Defesa da Liberdade Religiosa.
O presidente do Tribunal, desembargador Tutmés Airan, e outras autoridades do Judiciário e da Defensoria visitam terreiros, promovem rodas de conversas e levam serviços para as comunidades.