Reportagem

Kara Véia: a memória, o sucesso arrebatador e a celebração da breve vida do vaqueiro

19 anos depois de sua morte, reportagem do Olhos Jornalismo relembra os impactos da obra do chã-pretense

No dia 27 de março de 2004, Alagoas acordou com uma notícia: o corpo do cantor Kara Véia havia sido encontrado em seu apartamento. Aos 31 anos, ele interrompeu sua trajetória.

 A notícia correu a cidade. Estampou os jornais. Foi o tema dos programas da hora do almoço. No burburinho do boca a boca, a história tomou ares mitológicos, ganhou facetas. Na Vila Brejal, onde eu morava, ninguém acreditava no que havia acontecido: “Como pode? O homem está podre de rico! Isso é conversa! Tem coisa aí!”. A súbita partida de Kara Véia virou lenda por lá. Assim como a morte de Ester, da música de Osvaldo Silva. À época, na comunidade, muitos achavam que Mano Brown (vejam vocês) teria ‘dado fim’ a Ester e colocado a culpa no regueiro alagoano.

Kara Véia cantando em um de seus shows pelo estado (Foto: Arquivo Pessoal)

Deixando as fabulações de lado, a morte de Edvaldo José de Lima, o Kara Véia, não virou lenda por acaso. Ele foi o mais destacado cantor a fazer a transição dos cânticos de vaquejada – o aboio e a toada – para o forró. Não estou dizendo que o artista inventou o “vanerão”. Ou que outros grupos de forró do início dos anos 2000 já não estivessem tocando um forró mais rápido e em uma estética de vaqueiro. 

Arreio de Ouro, Aviões do Forró e Saia Rodada, inclusive, fizeram muito mais sucesso naqueles anos. Mas esses como tantos outros tentaram levar o velho forró melódico para o vanerão. Mantendo o estilo das composições e alterando apenas o ritmo. Arreio de Ouro talvez tenha sido aquele que mais tentou superar esses pontos. Mas nada se compara ao chã-pretense. 

Apenas ele sabia falar da vida de gado, dos amores, da bebedeira, da vida sofrida e do amor pelo seu canto. Aqui não se trata só de sucesso. Mas de aparentar viver ao estilo vaqueiro. 

Ele não tocava instrumentos. Odiava ensaiar. Era tudo feito de improviso. A música era parte do seu jeito de viver, uma pulsão de vida. Nada comparável aos rígidos ensaios e lógicas empresariais do mercado. O show era uma desculpa para estar junto, para compartilhar. A bebida também. E os colegas de banda eram amigos e não empregados. Tanto é que parte desses amigos – que integravam o grupo – não conseguiu se adaptar ao ritmo empresarial quando Mano Walter os contratou .     

Na trilha do sucesso

O hit mais popular de Kara Véia é, sem dúvidas, a composição de Heleno Gino e Ivone Leão, ‘Filho sem sorte’, mas é quando toca ‘Mulher ingrata e fingida’ que o bar inteiro vira a dose. É nessa hora que o coração aperta e só quem não amou passa por aqueles cinco minutos sem ter o coração apertado. Poucos não confundem a ordem daquelas sete estrofes, tocando “Toda minha desventura foi amar quem não me ama” por “Minha família comenta porque vivo desse jeito”. Mas quando puxa o aboio final é outra dose que será entornada.

Não se pretende aqui romantizar uma vida de traições, dívidas, dentre outras coisas. Mas sim de defender a vagabundagem, a festa e o excesso. Como nos diz Rafael Hadddock Lobo em Arruaças: Uma filosofia popular brasileira: “O boiadeiro é bom mesmo é na ‘ensinança’. E em vez de giz e quadro negro, essas ‘ensinanças’ de como se pensar se dão pelo chicote, laço e berrante”.

Um filho sem sorte, um pai amoroso

A reportagem do Olhos Jornalismo conversou com Gabriela Lima, de 29 anos, filha do cantor. A jovem tinha apenas 10 anos quando o pai faleceu. Ela é a mais velha de quatro irmãs. É ela quem guarda as lembranças mais nítidas de seu pai e mantém com as outras filhas um perfil no instagram em homenagem ao cantor. São mais de 70 mil seguidores.“Pelo que eu lembro, quando ele estava em casa, ele gostava de ficar deitado na cama cantando as músicas dele. Ele cantou Mulher ingrata e fingida na cama e nós escutando. Eu lembro quando a gente saia pra churrascaria. Era bem protetor. Até pra brincar na rua, ele não deixava a gente brincar. Era tudo dentro de casa”, recorda.

Se mesmo em casa não esquecia a cantoria e seguia a linha protetor com as filhas, quando ia a Chã Preta, sua cidade natal, a mistura era outra. “Era tratado normal, porque todo mundo conhecia ele desde criança, mas também como ídolo porque o pessoal gosta muito dele”, conta Gabriela. “Ele gostava muito de correr vaquejada e ir pra fazenda de ‘seu Canti’ lá em Chã Preta. Quem mais andava com ele era eu. Teve uma vez que eu, ele e meu avô, pai do meu pai, fomos passear a cavalo e o cavalo desembestou comigo. E eu achando bom, que ele estava só correndo. E o painho gritando’ puxe a rédea de baixo!’. E eu sem entender nada. Eu era pequena, tinha uns oito anos”. 

A lembrança com carinho transparece na conversa. Mesmo já sendo uma adulta com quase 30 anos, é por ‘painho’ que Gabriela trata a lembrança do artista. “Uma vez, eu e minha irmã entramos escondidas no carro pra ir com painho pro show. Ele estava tomando banho e a gente se arrumou primeiro que ele. Aí o painho ia tirando o carro da garagem. Quando ele viu que a gente estava dentro do carro ele mandou descer dizendo que ia sozinho dessa vez. Nós ficamos em casa chorando”.

Kara Véia e quatro das suas cinco filhas (Foto: Arquivo Pessoal da Família)

Além dos momentos de traquinagem tinham também os de se vangloriar do ‘painho’ famoso. “Quando chegava o ônibus, o painho trazia aqui pra casa e eu tinha umas amigas aqui na rua. Aí eu pedia pra trazer as meninas pra conhecer o ônibus. Elas ficava tudo besta com aquele ônibus enorme”, diz orgulhosa e continua “quando eu completava ano, todo ano, nós passávamos na vaquejada de Viçosa. Porque o painho corria. Era muito bom”

Gabriela vive na mesma casa que a família morava com o cantor, no bairro Novo Mundo, parte alta de Maceió. Com ela, ainda moram a mãe e a irmã mais nova, por “parte de pai e mãe”, Daniele, de 22 anos. Marília, 24, também segue na capital alagoana e Rafaela, 28, está em Pernambuco. A outra irmã, Kamile, 21, fruto de um outro relacionamento, mora em Santana do Ipanema, no sertão do estado. 

A vida de fama do pai não trouxe conforto e estabilidade para a família como muita gente imagina. Gabriela faz brigadeiro e outros doces para vender. E olha só o nome do pequeno negócio: @doceriafoivocê. Rafaela, de 28 anos, trabalha em uma fábrica de costura, Marília no Sesi, Daniele é recepcionista e Kamile faz faculdade de Direito. A mãe, dona Nilda, segue trabalhando com serviços gerais. “A gente vive bem, mas painho não deixou a gente rica, não, somos normais como qualquer outra família normal com sua vida normal e seu trabalho.”

Cantor foi homenageado pela Prefeitura de sua cidade natal com uma praça com seu nome (Foto: Print/Canal Marcos André Vaquejada)

Além da pouca lembrança ficou também o gosto pela vaquejada e pelo forró. “Eu gosto muito de vaquejada até hoje. Sempre que posso, eu vou.  Amamos muito vaquejada, toadas, forró, tudo que lembre nosso pai e tudo que acostumamos com ele”, finaliza.

Referência para famosos e anônimos

Muito tempo depois da morte de Kara Véia, o forró fez mais um encontro com os temas que ele cantava. É comum João Gomes, Zé Vaqueiro e Tarcísio do Arcodeon cantarem músicas do “cara metade” das vaquejadas. Inspirado no seu conterrâneo, Mano Walter talvez tenha sido o primeiro a chegar ao sucesso regional e nacional falando da saudade do interior, de não trocar ‘o meu chapéu pra usar gel, não deixo, não’. Curiosamente, no show mais recente que fui dele, assim como aparece nos novos vídeos na internet, o artista está usando gel, tênis, camisa polo. Popular. 

Já Tarcísio chegou a gravar um disco em 2021 em homenagem a Kara Véia. O CD tem 10 músicas. São elas: Estrela da manhã, Foi você, Sonho colorido, Canções de Vaqueiro, De braços abertos, Agora é minha vez, Eu e você, Fim de semana, Peão de vaquejada, Parque Antônio Rouco.  

A retomada dos temas da vaquejada, do aboio e da toada, da vida no interior também estão presentes em letras de João Gomes. O chapéu foi substituído pelo boné, algo bem característico de quem acompanha as vaquejadas e corridas de ‘pega boi’ no mato.

Mas tudo segue também uma lógica empresarial. Todos são assessorados por grandes conglomerados de mídia. O ritmo profissional e a produção alucinante de novos hits impedem que algo sobreviva ao tempo. A nova mais tocada é esquecida pela antiga e como não se vive o que se canta, a geração seguinte vai cantar ‘Filho sem sorte’, ‘Mulher ingrata e fingida’ e ‘Foi você’ mais uma vez.

Distante do mundo dos grandes shows, um pouco de Kara Véia sobrevive. Durante a semana, Dinei Melo trabalha na roça no povoado Riacho da Jacobina, que fica entre os municípios de Traipu e Belo Monte. A lida por essas bandas é com roça de milho e feijão. Trabalha por uma diária de R$80. Isso quando aparece uma. Nos dias sem labuta, o destino é o bar do povoado. 

Quando chega o final de semana, a coisa muda de figura. Dinei se transforma em Gaguinho Pressão e percorre os povoados da região com seu show. Com problemas na dicção, ganhou esse apelido. O que ele logo transformou em nome artístico. Nas festas de padroeiro, nas cavalgadas, nas corridas de boi no mato da região seu nome é dos mais requisitados. O cachê varia entre R$200 e 300. Ele leva a mesa de som com microfone e no celular tem a lista com as músicas que vai cantar. Cabe ao contratante garantir o paredão que fará a amplificação do som. 

Gaguinho Pressão, que se inspira em Kara Véia (Foto: Arquivo Pessoal)

Tudo é muito improvisado e regado a muita cachaça. Se falta bebida na mesa do cantor, ele não perde tempo de falar ao contratante para trazer mais uma latinha. Isso porque o litro de Montilla já está na mesa. O repertório vai mudando conforme o pedido do público e nem sempre se sabe as letras corretamente. Se aparece alguém dizendo que sabe cantar, o microfone é entregue para que Gaguinho possa conversar com os amigos um pouco. E também paquerar. Ele tem namoradas espalhadas pelos povoados. Quando briga com uma, vai morar na casa de outra. Sofre e chora desiludido. Quando se pergunta porque ele não se aquieta com uma, ele responde: 

Eu amo demais!  

Seu sonho é ser famoso, tocar nos grandes palcos, viajar o Brasil. Ele tem trabalhado em suas próprias composições, mas não sabe tocar. 

Quando disse que queria fazer uma entrevista com ele sobre sua carreira e querendo saber da importância de Kara Véia, as respostas foram curtas. Disse que gostava porque falava da vida no interior, que era um grande cantor. Contou também que no último mês não tocou todo fim de semana devido à quaresma. As festas diminuem nesse período. Talvez se as perguntas fossem feitas aos cantores famosos, as respostas seriam cheias de referências, rebuscadas. Mas Gaguinho não precisa disso. Ele já é a experiência viva de que o jeito Kara Véia de cantar segue vivo.    

Clique e confira: Flaucast entrevista Gabriela Lima, filha de Karavéia

 

Serviço

O Centro de Valorização da Vida (CVV) oferece apoio 24 horas, de forma gratuita e sigilosa, pelo telefone 188, por e-mail e pelo site. Se você está passando por um momento delicado, procure ajuda.

Além disso, em Maceió, você pode ter acesso ou indicar pessoas que precisem cuidar de sua saúde mental por meio da lista a seguir: Saúde Mental: onde procurar ajuda e como ter acesso aos serviços em Maceió.

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Homero Baco

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  • Reportagem massa! Me levou a infância. Época boa em Palmeira dos Índios, onde a toada andava junto ao brega de Reginaldo Rossi.

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