Elielson Faustino Bezerra viu, ainda criança, as suas raízes históricas serem reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares, em 2005. Anos depois, a certificação parece não ter garantido na prática a prioridade na vacinação contra a Covid-19, como recomenda o Plano Nacional de Imunização (PNI).
Internado no Hospital Regional Clodolfo Rodrigues, em Santana do Ipanema, ele não resistiu às complicações do coronavírus e morreu nas primeiras horas da manhã da última quarta-feira (14). No mesmo dia, o Boletim Epidemiológico da Secretaria de Estado da Saúde (Sesau) confirmava mais 802 casos da doença, seguido de outras 23 mortes.
No Quilombo Paus Pretos, situado na cidade sertaneja de Monteirópolis, a comunidade vive agora com o luto causado pela morte do jovem de 23 anos, filho de Eriberto Félix e Eliene Silva, lideranças do local, enquanto tenta lidar com a angústia sem fim à espera da vacina para todas as pessoas acima dos 18 anos.
Pelo PNI, além dos idosos, deveriam receber a vacina, de forma prioritária, indígenas, ribeirinhos e quilombolas. Mas, desde que o primeiro lote de vacinas chegou a Alagoas, as comunidades formadas por descendentes dos povos escravizados não foram sequer citadas pelo Governo. Esse ‘esquecimento’ perigoso não vem de agora. Em junho, quando a Secretaria do Planejamento, Gestão e Patrimônio (Seplag) apresentou o Painel de Dados da Covid os registros de casos e mortes do grupo nunca foram computados no sistema.
Em janeiro, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas e a Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas protocolaram, via e-mail à Sesau, um ofício que reivindica o direito à vacina aos quilombolas alagoanos em um calendário exclusivo.
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Já em fevereiro deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que o Governo Federal formulasse, em um prazo de 30 dias, um plano nacional de enfrentamento à pandemia da Covid-19 para a população quilombola com a providência de protocolos sanitários e com a participação de representantes da Conaq. Localmente, mais uma vez, não adiantou muito.
Prova disso é que representantes das comunidades quilombolas e integrantes de movimentos sociais de Alagoas denunciaram a situação no início deste mês — por meio de um mandado de segurança ao Ministério Público Federal — direcionado ao Governo de Alagoas por não ter criado um calendário de vacinação contra a Covid-19 específico para os territórios quilombolas.
Ainda neste mês de abril, o Ministério Público Federal (MPF) expediu recomendação ao Executivo Estadual e à Sesau para que seja estabelecido o cronograma de vacinação para povos, comunidades tradicionais quilombolas e ribeirinhas, conforme previsto no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19.
De autoria dos procuradores da República Bruno Lamenha, Julia Cadete, Niedja Kaspary e Roberta Bomfim, que compõem o GT Covid-19, em Alagoas, a Recomendação nº 8/2021 orienta aos gestores da saúde do estado a distribuição das doses necessárias à vacinação de grupos ribeirinhos e quilombolas à Rede de Frio de imunobiológicos municipais, nas localidades onde estão situadas essas comunidades tradicionais.
Na terra de Dandara e de Zumbi dos Palmares, conhecida como berço do maior quilombo das Américas, a palavra resistência parece ter ainda mais significado para os mais de 54 mil quilombolas e outros povos tradicionais que vivem em situação de vulnerabilidade social, como ressalta Manuel Oliveira, o Bié, da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas e membro do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial (Conepir-AL) e também do Conaq.
O Governo do Estado descumpre o PNI e também desconsidera a orientação do MPF. Já estamos há muito tempo lutando por meio de ofícios à Sesau e ao Gabinete Civil sobre essa situação e até o momento não houve qualquer resposta. Aliás, o silêncio foi a resposta
Além de não ter executado um calendário da vacinação específico para os quilombolas de Alagoas, desde que a pandemia foi decretada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), não houve, de acordo com o coordenador, qualquer tipo de ajuda ou auxílio nas comunidades que passaram a viver ainda mais na vulnerabilidade em seus municípios.
“Não tem trabalho nenhum do Governo ou das prefeituras. Entre todos os estados brasileiros, Alagoas parece ser o único que não vê as 70 comunidades certificadas e reconhecidas, localizadas em 35 municípios. Estamos na terra de Ganga Zumba, Zumbi, de Dandara, de Aqualtune, mas sem o respeito devido, sem acolhimento de vida e sem respostas. Nós queremos viver!”, ressalta Bié.
Em resposta à reportagem, a assessoria de comunicação da Sesau enviou uma nota informativa da Superintendência de Vigilância em Saúde. O documento detalha a 12ª remessa de vacinas contra a Covid-19. Segundo esse documento, os municípios que possuem população quilombola de até 400 habitantes receberão as doses correspondentes a 100% da população estimada (com idades entre 18 e 59 anos).
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Nas cidades que possuem contingente populacional quilombola maior que 400 habitantes, a vacinação ocorre de maneira distinta: serão vacinados apenas remanescentes com idades entre 55 e 59 anos. Dessa forma, serão distribuídas 7.310 doses para a vacinação da população quilombola com idades entre 55 e 59 anos ou toda a população quilombola. Esse documento, para Bíe, comprova que o Estado não está cumprindo com as determinações do STF quanto à vacinação de toda a população quilombola.
“O que queremos é que a Sesau cumpra com a determinação e não essa vacinação parcelada de acordo com o contingente populacional de cada comunidade. O Estado está negando o nosso direito. Queremos que nosso povo seja vacinado e não apenas pela idade, e sim por completo. Que todos possam ter esse direito respeitado”, salienta.
Como prevenir?
Como não receberam kits de higiene e convivem sem acesso ao saneamento básico, dentre outras situações precárias, a prevenção nas comunidades tradicionais é feita com poucos recursos e, muitas vezes, a sabedoria popular é utilizada na tentativa de se fortalecer contra a Covid-19.
“Estão usando máscaras e lavando a mão com sabão porque isso de álcool é caro. Muitos, inclusive, fazem chá porque acham que ajudam a curar o novo coronavírus. Esses cidadãos não sabem o que é ter um vaso sanitário em casa. Isso é muito triste. Parece que a gente foi apagado do mapa. Estamos nessa etapa de vacinação e não tem chegado suficiente para a gente. Enquanto isso, as mortes nas comunidades continuam acontecendo”, conta.
*Foto em destaque: Grupo de Pesquisa Nordestanças
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