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Nem tudo o que reluz é ouro

Mesmo com produção diversa, autores alagoanos contemporâneos têm pouca ou nenhuma crítica dos seus trabalhos e ocupam cada vez menos espaço nos maiores eventos literários

Texto: Jean Albuquerque

Fotos e Vídeos: Vitor Beltão

Os meteorologistas afirmam que 2020 começou com o janeiro mais quente já registrado no planeta. O calor do primeiro mês do ano poderia ser sentido nas ruas, no vento abafado, no suor excessivo dos passageiros do transporte público. E foi nesse clima que numa tarde abafada de Maceió me dirigi a casa de Milton Rosendo, 45, poeta e doutor em Estudos Literários, pela Universidade Federal de Alagoas – Ufal.

A sua casa fica localizada na Pajuçara — um dos bairros tradicionais da cidade, segundo o dicionário de Aurélio Buarque de Holanda, tem por significado “muito grande” e surgiu no século passado no intuito de ser um balneário para as famílias ricas residentes dos bairros Bebedouro, Farol e Centro. Ao subir uma pequena escada que dá acesso a sua residência, fiquei recapitulando o roteiro de perguntas na minha cabeça, meu maior intuito era o de fazer com que o entrevistado conseguisse ficar à vontade, descontraído e que todo o papo fluísse naturalmente.

Ao chegar ao local, fomos espalhando os livros numa mesa e logo tratei de acender um cigarro para relaxar e começar os trabalhos. A conversa fluiu, foi uma tarde para refletir sobre as produções dos escritores locais e o espaço que essas obras ocupam no Estado. Alagoas possui dois eventos literários de grande porte, são eles: a Festa Literária de Marechal Deodoro (FLIMAR), que acontece anualmente e a Bienal Internacional do Livro de Alagoas, realizada pela Ufal a cada dois anos. Esses eventos cedem pouco espaço para os escritores locais e não dialogam com a diversidade de publicações e propostas literárias que vemos hoje em Alagoas.

“Para começo de conversa, eu não salvaria a Bienal do Livro e muito menos ainda a FLIMAR. Não estou aqui desmerecendo os eventos em si, mas a política deles para com a produção local. Existe hoje um boom literário acontecendo em Alagoas, o que tem sido feito, efetivamente, para dar visibilidade a isso? Alguns de nossos jovens escritores são tão bons ou até superiores ao que vejo ser editado fora do Estado. Sim, é sempre possível pensar estratégias, e, claro, não é preciso esperar que nos deem visibilidade, mas fico triste de perceber que esses eventos acabam reproduzindo aquela besteirada de que só é bom o que vem de fora”, argumenta Milton Rosendo.

Além da pouca visibilidade, um outro fator é que não existe crítica para o que é produzido em terras caetés. “O que existe é um ou outro trabalho esparso que reflete sobre um determinado autor ou texto produzido. A crítica é fundamental para o fortalecimento do sistema literário. O que acontece é que há muita gente que torce o nariz para a literatura feita por alagoanos. É uma forma de negação velada, que trata de não reconhecer pelo silenciamento”, acrescenta Rosendo.

Milton Rosendo nasceu em Maceió, no ano de 1974. A poesia surgiu na sua vida no final da adolescência após a leitura de “Ao Braço do Mesmo Menino Jesus Quando Appareceo”, um soneto do baiano Gregório de Matos. Depois da experiência estética decidiu ser poeta. O primeiro livro publicado foi a coletânea Os Moinhos (Edufal, 2009), agraciado com o Prêmio Lego de Literatura, promovido pela Faculdade de Letras (FALE), da Universidade Federal de Alagoas. Já em 2016, veio a publicação do poema épico Caos-Totem (Imprensa Oficial Graciliano Ramos), por intermédio do Programa de Incentivo à Cultura Literária. Em 2017, pela editora Trajes Lunares, através do Prêmio Eris Maximiano, por meio da Lei de Incentivo à Cultura, da Prefeitura de Maceió, lançou o livro + CD Amores Ébrios, obra que divide poemas com os escritores: Brisa Paim, Igor Machado, Bruno Ribeiro e Nilton Resende. Rosendo possui em torno de 17 livros, alguns já prontos, outros, em andamento. “Tenho escrito muito. Literatura é hospício, com ela ensaio alguma sanidade. Tenho quatro livros para apresentar ao público em breve: Não Pertence a, Azul como um Rottweiler, Spin e a edição de bolso Esposar o Abismo”, acrescenta.

Conversamos com o poeta e Doutor em Estudos Literários e esse bate-papo pode ser conferido logo abaixo.

Jean Albuquerque Se você fosse pensar num panorama da literatura contemporânea em Alagoas, quem não poderia ficar de fora?

Milton Rosendo Para começar, a novíssima literatura produzida em nosso Estado se inicia, na minha opinião, com a publicação do livro de poesias O Orvalho e os Dias, do Nilton Resende. Nilton é o primeiro de uma nova geração de escritores e escritoras que estava começando a despontar na cena cultural. Para muitos dessa novíssima leva de criativos literários, Nilton é o mestre, o que colaborou decisivamente no processo de criação de muitos dos títulos que, hoje, se encontram publicados. É um escritor modelar, exímio, extremamente cerebral.

Há a Brisa Paim, autora do monumental A Morte de Paula D. Brisa é uma das escritoras mais brilhantes deste país. A Amanda Prado é de um domínio técnico da escrita absurdo, nada nela é excesso, tudo em seus textos revela o apuro, a sensibilidade, o rigor, a mestria. O Richard Plácido, por sua vez, assombra pelo lirismo gótico, agressivo, de suas imagens. O Felipe Benício é um poeta extremamente inquieto, explorador de diferentes formas, inventivo, mutante. O Magno Almeida, outro expoente dessa produção atual, é alguém que escreve com as vísceras, há suor, há sangue nos seus versos. Intuitivo, experimental, transgressivo. Há também a Ana Maria Vasconcelos, o Luiz Felipe, o Lucas Litrento, o Sérgio Prado Moura, o Mateus Magalhães, a Fátima Costa, o Jean Albuquerque, o Bruno Ribeiro…

J.A. As publicações ainda estão restritas aos editais da Imprensa Oficial, editoras ligadas a Universidades e pequenas editoras. Você acha que essas iniciativas atendem as várias propostas de produções que vemos hoje?

M.R. Embora esses veículos sejam importantíssimos para o escoamento de boa parte do material produzido, sobretudo, por autores e autoras que estejam ainda no início de suas carreiras, é óbvio que não dão conta de todo o tipo de proposta estética. Na verdade, existem muitos outros meios de exposição do trabalho autoral, a Internet, indubitavelmente, é o que mais abarca a heterogeneidade da produção. O conceito de “livro” não está mais necessariamente atrelado ao objeto físico livro, nem depende mais de editoras ou livrarias.

J.A. Em relação ao público leitor, é possível traçar um perfil?

M.R. (risos) Não mesmo, acredito que não. Livro é uma carta para um destinatário desconhecido, não tem endereço certo. O público leitor de poesia, por exemplo, é tão diversificado quanto os tipos de poesia. Há os que gostam de algo mais tradicional, outros, que se interessam por propostas mais experimentais, de vanguarda, ou então mais despojadas, de apelo popular.

J.A. Você ministrou no ano passado um curso voltado para a criação de poesia, no SESC-AL. Qual é a importância das iniciativas do SESC para o fomento e fortalecimento da literatura local?

M.R. Pode-se dizer que o Sesc é a espinha dorsal de toda a arte viva sendo produzida aqui e no Brasil afora. Para muitos escritores, o SESC viabiliza a interação com o público leitor ou com novos públicos, permite pensar o processo criativo, gera laboratórios de criação para novos autores, possibilita a edição de inéditos através de seu prêmio nacional, respeita e dá visibilidade a todo tipo de produção indiscriminadamente, entre outras tantas coisas. Eu sou todo gratidão a essa instituição que tanto zelo tem pela nossa cultura.

J.A. Ainda são poucos os eventos que tenham como foco a literatura aqui no Estado. Salvo a Bienal do Livro de Alagoas e a FLIMAR e, mesmo assim, essas feiras literárias cedem pouco espaço para os escritores locais. É possível pensar em estratégias para além dessas iniciativas?

M.R. Para começo de conversa, eu não salvaria a Bienal do Livro e muito menos ainda a FLIMAR. Não estou aqui desmerecendo os eventos em si, mas a política deles para com a produção local. Existe hoje um boom literário acontecendo em Alagoas, o que tem sido feito, efetivamente, para dar visibilidade a isso? Alguns de nossos jovens escritores são tão bons ou até superiores ao que vejo ser editado fora do Estado. Sim, é sempre possível pensar estratégias, e, claro, não é preciso esperar que nos deem visibilidade, mas fico triste de perceber que esses eventos acabam reproduzindo aquela besteirada de que só é bom o que vem de fora.

J.A. Podemos dizer que existe uma crítica voltada para o que é produzido em Alagoas?

M.R. Não, não podemos. O que existe é um ou outro trabalho esparso que reflete sobre um determinado autor ou texto produzido. A crítica é fundamental para o fortalecimento do sistema literário. O que acontece é que há muita gente que torce o nariz para a literatura feita por alagoanos. É uma forma de negação velada, que trata de não reconhecer pelo silenciamento.

J.A. O que poderia ser feito para ter um maior acesso e circulação das obras dos escritores alagoanos?

M.R. Sou contra o vitimismo e a mendicância artística. O escritor precisa parar com essa dependência de editora, livraria, etc. É preciso dar a cara à tapa, mostrar o seu trabalho para leitores especializados e de bom ânimo, enviá-lo para revistas, criar coletivos literários, produzir eventos, enfim, fazer a coisa acontecer.

J.A. O que acha dos coletivos literários, editoras independentes e grupos de leitura?

M.R. Fundamental. É nas trocas simbólicas, na interação com o outro, que nos aperfeiçoamos e nos tornamos melhores. Experiências como o grupo Ofélia ou o Pernoite, editoras como a Trajes Lunares ou a Sirva-se Edições Independentes são mostras de que a literatura alagoana respira e está mais viva do que nunca.

 

Jean Albuquerque

Jornalista, escritor e estudante de Letras na Ufal. Editor do site O que os Olhos Não Veem. Colabora com o site Negrê, correspondente em Maceió, do Portal Lunetas. Acredita no jornalismo independente, pautado pela diversidade e pelos direitos humanos.

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