A imagem de Waciran Ferreira Costa, 36, primeiro indígena em Alagoas a receber a vacina contra Covid-19, no início de janeiro, ecoou nas 12 comunidades do estado: Xucuru Kariri, Kalankó, Jeripankó, Kariri-Xokó, Tinguí Botó, Wassu Cocal, Karapotó Plaki – ô, Aconã, Karuazu, Karapotó Terra Nova, Katokinn e Koiupanká.
Àquela altura, sem considerar os que vivem fora dos territórios homologados pela Fundação Nacional do Índios (Funai), o novo coronavírus já tinha tirado a vida de seis indígenas em Alagoas, de acordo com dados do Painel Covid-19, mantido pela Secretaria de Estado da Saúde. Eles eram prioridade no Plano Nacional de Imunização, mas quase oito meses se passaram e 152 indígenas alagoanos permanecem sem o imunizante.
Mesmo com uma taxa considerável de pessoas desse grupo que receberam a vacina, 8.071 indígenas, representando 96% do público-alvo – muitos que moram nas comunidades ou vivem nas cidades ainda não se vacinaram. Não foi por falta de imunizante, eles disseram não à proteção.
Medo da reação, descrédito na ciência, falta de informação e o direito de não se imunizar estão entre os motivos dos indígenas que ainda seguem mais suscetíveis às consequências de uma doença que já matou quase 600 mil pessoas no Brasil, dentre elas 1.197 indígenas, de 163 povos.
Ser da terceira comunidade com maior incidência de óbitos entre indígenas de Alagoas, a Xucuru-Kariri, localizada em Palmeira dos Índios, Agreste do estado, não impediu Gonçalo Silva, 45 anos, de negar a vacina. Para ele, ainda não há certeza que os imunizantes aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) sejam eficientes.
O que me levou a não se vacinar foi simplesmente não ter uma segurança precisa, ou seja, garantida. Então, destaco dois pontos: mesmo tomando a vacina, continuarei usando os mesmos protocolos como gel e máscara e mesmo tomando a vacina posso ser afetado pelo vírus do mesmo jeito
Os casos de mortes pós-vacina, para o agricultor, como a do ator Tarcísio Meira, falecido aos 85 anos, são indícios de que o imunizante não funciona. “Disseram que quem tomasse a vacina não ocorreria agravamento nos órgãos. Os casos estão aí acontecendo com as pessoas que tomaram a vacina e estão morrendo. Para mim, quem nos protege e continuará protegendo é Deus”, afirma.
E os não aldeados?
Os casos de recusa da vacina não atingem apenas os indígenas que vivem nas aldeias. Os chamados não aldeados — que moram nas cidades — também têm deixado de se imunizar. Com a justificativa de que o Plano Nacional de Vacinação contra a Covid-19, elaborado pelo Ministério da Saúde (MS), prevê, em específico, apenas a vacinação de aldeados, a Secretaria de Estado da Saúde alegou à reportagem do Olhos Jornalismo que não possui este recorte.
“A Sesau-AL informa que pelo PNI devem ser vacinados os aldeados e que as doses de vacinas são disponibilizadas aos polos indígenas de cada município”, diz um trecho da nota enviada via assessoria de comunicação.
Mesmo com a ausência de dados, não foi difícil encontrar alguém nesse perfil. Jailson Yakanã, da etnia Wassu-Cocal, que vive entre Maceió e Joaquim Gomes, é um deles. No final do ano passado, ele contraiu o coronavírus, passou uma semana acamado, mas nem isso foi suficiente para fazê-lo mudar de ideia.
“Foi por opção mesmo. Não tem a ver com política nenhuma, nem disso gosto. Já peguei o vírus, acredito que estou imunizado. Quando fiquei doente, tive febre, dor de cabeça, foi horrível. No momento, eu não quero me vacinar”, ressalta.
Yakanã conta que além dele, outros moradores da sua comunidade também fizeram essa opção. Por conta disso, o cacique promoveu uma espécie de busca ativa nas casas das famílias, levando informação e convocando as pessoas.
“Toda vez que eu vou à comunidade, sempre uso máscara e álcool em gel para proteção. Por lá, a liderança percorre as casas conscientizando e conversando com todos para tentar convencer que eles se vacinem”, conta.
Trabalho de ‘formiguinha’
De porta em porta. Assim o pajé Celso Celestino define o trabalho feito na comunidade Xucuru Kariri. Desde que a vacinação teve início e as primeiras recusas aconteceram, foi preciso montar estratégias para poder convencer as pessoas que o imunizante ainda é a melhor resposta para se proteger de um quadro de saúde mais grave causado pelo vírus. Ninguém disse que seria fácil. O trabalho foi por diversas vezes, de acordo com Celestino, frustrado pelas constantes declarações do presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido).
Virar jacaré, produto da China contaminado, imunizante amaldiçoado estão entre as principais alegações ditas pelos Xucurus que ainda não receberam a primeira dose.
“Conseguimos convencer com essa busca ativa, na base da conversa, de porta em porta, de boca em boca, no olho a olho. Por exemplo, na minha aldeia são 980 pessoas, tivemos 32 recusas, idosos representam a maioria. Aí voltamos na casa de cada um, conversamos e hoje só cinco deles ainda se negam, o resto tomou”, relembra o pajé.
Palestino, que preside o Conselho Distrital de Saúde Indígena — Alagoas e Sergipe, explica ainda que dentro da cultura e tradições indígenas não há qualquer tipo de punição ou sanção para as pessoas que optaram por não receber o imunizante.
“Nós temos nossos rituais, no que a gente acredita. E por isso não somos punitivistas, não proibimos nosso parentes e irmãos de participar de alguma atividade na aldeia por terem recusado. Não excluímos, muito pelo contrário: somos acolhimento, zero discriminação, são nossos parentes, nosso sangue”, explica o pajé.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) lançou no primeiro trimestre deste ano a campanha: “Vacina, parente!” para conscientizar sobre a importância da vacinação no combate à disseminação do novo coronavírus, bem como cobrar do poder público a vacinação para toda população indígena no país.
De acordo com a Apib, há a propagação junto às comunidades indígenas de incontáveis notícias e informações mentirosas que estão induzindo muitos parentes a rejeitarem a vacina contra Covid-19.
“Muitas das mentiras e desinformações vêm sendo geradas por Bolsonaro e o primeiro escalão do Governo Federal. Argumentos falsos de que indígenas estão no grupo prioritários para serem exterminados como ‘cobaias’ da vacina ou que a vacina provoca câncer e altera o DNA das pessoas são algumas das informações mentirosas que estão sendo veiculadas em muitas comunidades”, diz um trecho da nota divulgada no início do ano.
Confira mais detalhes da campanha “Vacina, parente” aqui!
Estratégia coletiva
Na linha de frente da pandemia de Covid-19 há mais de um ano, o médico infectologista da Secretaria de Estado da Saúde René Oliveira ressalta que a imunização é o melhor recurso contra o novo coronavírus.
“A vacinação é uma estratégia coletiva. Ou seja, quanto maior a cobertura vacinal menor será a possibilidade de transmissão viral. Veja como exemplo o que estamos vivendo com o sarampo. A cobertura vacinal caiu e agora os casos estão voltando. O ideal seria que todos se vacinassem”, explica Oliveira. Segundo ele, quando algumas pessoas decidem não se vacinar, elas podem estar comprometendo, sim, a comunidade, embora a porcentagem de imunização dos indígenas em Alagoas seja considerada alta. “O ideal era que todos tomassem”, orienta Oliveira.
Para o infectologista, a desinformação pode contribuir para que as pessoas se recusem a receber o imunizante. Ele alerta que todas as vacinas disponíveis no Brasil foram devidamente aprovadas e regulamentadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e que não há motivos para duvidar da eficácia.
“Infelizmente estamos na época das informações falsas que chegam à população e comprometem o trabalho da ciência e da medicina. De forma alguma ter contraído o vírus não garante que a pessoa não vá pegar de novo. Além disso, é preciso destacar que nenhuma vacina protege 100%”, afirma. De acordo com o médico, a resposta que a vacina dá é em relação, principalmente, à evolução de casos graves da doença. “Já temos no mundo todo mais de 2 bilhões de pessoas vacinadas e você não vê nada relacionado a mortes por causa das vacinas. Agora, as chances de viver caso a pessoa pegue o vírus aumentam e isso é o que estamos vendo. A diminuição gradativa de óbitos”, conclui o médico.
Informação contra a desinformação
A Agência Bori, em parceria com o Instituto Questão de Ciência (IQC) e apoio do Sabin Vaccine Institute apresentou, em março, o “Manual Noticiando Vacinas”. A publicação – que tem como foco jornalistas – foi feita com o apoio de imunologistas, virologistas e epidemiologista, mas com conteúdo leve e informativo pode ajudar outras pessoas no entendimento sobre a importância da vacinação e outros contextos referentes ao tema. Baixe o material clicando aqui!
“Esta reportagem é uma produção do Programa Sala de Redação, realizado pela Énois – Laboratório de Jornalismo, do projeto Jornalismo & Território, com o apoio da Fundação Maria Cecília SoutoVidigal, Porticus e Open Society Foundation”.
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