Método cubano “Sim, eu posso!” se apoia em produções audiovisuais
Igrejas, escolas, bares ou um pequeno espaço da sala de casa, diversos são os lugares utilizados pelos educadores do projeto “Sim, eu posso!”, para ensinar jovens, adultos e idosos a aprender a ler e a escrever. O programa usa um método de alfabetização idealizado em Cuba, que se apoia nas telenovelas como forma de ensino. No Brasil, a iniciativa chegou em uma parceria com algumas prefeituras do Piauí. Em 2007, foi incorporada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), nas zonas agrárias. De lá para cá, somente em Alagoas, foram beneficiadas cerca de 400 pessoas, dentre elas Maria de Fátima da Silva.
Aos 39 anos, a dona de casa delmirense tem um histórico de vida parecido com o de muitas outras Fátimas, Teresas e Joanas encontradas ao redor do país. Ainda na infância, precisou parar de estudar porque sua mãe decidiu viajar e a levou junto. Algum tempo depois, houve outra tentativa de aprendizagem que foi interrompida por uma gravidez.
Quando passei da primeira para a segunda série, engravidei. Aí fui cuidar de casa, de menino e não tive mais tempo para estudar
Foi há apenas cinco anos que uma nova oportunidade foi apresentada à sertaneja por meio do método “Sim, eu posso!”. Em 2017, a campanha estava atuando nos municípios de Piranhas, Olho D´Água do Casado e Delmiro Gouveia. Maria de Fátima aproveitou a chance e se tornou uma das poucas alunas a concluírem a alfabetização e a sair de vez de uma estatística cruel que revela as desigualdades ainda presentes no estado. Com a maior taxa de analfabetismo do país, com 17,1%, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Alagoas tem 337 mil pessoas de 14 anos ou mais que não sabem nem ler nem escrever.
“Minha maior dificuldade era juntar as consoantes e vogais, quando estavam as duas juntas era difícil, agora eu já desenrolo. Não vou dizer que sei ler tudo de uma carta, mas me ensinou muito mesmo. Se viesse de novo, iria de novo, foi muito bom pra minha vida, e se eu me esforçar, consigo ler”, contou.
O projeto foi adaptado pelo MST para ser aplicado em território nacional, seja ele urbano ou rural, e pode ser utilizado por qualquer pessoa que se proponha a aprender, independente do grau de escolaridade. “Ele é desenvolvido através de aulas em formato de telenovelas, no qual debatemos temas geradores. Após isso, há as aulas práticas com exercícios para coordenação motora fina, até os números, letras e sílabas. O professor (monitor) tem a função de reforçar os exercícios das aulas, como também acolher alegremente nossos educandos”, explicou a professora e coordenadora do setor de educação do Movimento em Alagoas, Marcela Nunes, em conversa com a reportagem do Olhos Jornalismo.
Os educadores escolhidos fazem parte da comunidade e os outros são integrados no MST. Para contribuir há exigências: ter disponibilidade, disposição para ensinar e uma escolaridade mínima. Essa tríade de atributos integra o perfil de Aline Oliveira. Ela é uma das jovens que fazem parte do coletivo de juventude do Movimento e foi convocada a ensinar. No “Sim, eu posso!” coordenou o mutirão de alfabetização no sertão e foi educadora de uma turma em Maceió. Para ela, a iniciativa mostrou que “a educação é um ato revolucionário, que ler e escrever é enxergar o mundo através das letras, é autonomia, amor próprio de muitas mulheres”.
No método cubano, os alunos, também chamados de educandos, aprendem primeiramente assistindo. A partir dos capítulos da telenovela, há uma associação feita entre as letras do alfabeto e os números. Esse processo facilita a memorização e o aprendizado de cada letra. Com o tempo e as aulas, eles passam a identificar e construir palavras e frases e dão os primeiros passos, ou melhor, escrevem e leem as primeiras vogais em busca da alfabetização.
Há pedras no caminho
O “Sim, eu posso!” é desenvolvido durante três meses em cada região, e as aulas são orientadas pelos educadores. Eles utilizam, ao todo, 65 telenovelas e uma cartilha do aluno disponibilizada pela organização. No entanto, os outros materiais necessários como quadros, cadeiras, cadernos, televisores, lápis e borrachas dependem dos locais onde as aulas são ministradas, o que dificulta, muitas vezes, que ele seja aproveitado em sua totalidade.
“Em alguns momentos, conseguimos parcerias com doações de materiais e espaços físicos e notamos as eficiências. Porém, há necessidade da participação do Estado com a garantia de políticas públicas que permitam a permanência e a continuidade do método e, também, da escolaridade, através de exames de vistas, espaços adequados e iluminados, merenda e materiais didáticos. Principalmente por ser um público no qual retorna a sala de aula, mas por algum motivo parou de estudar por não ter condições de continuidade. Sem falar que é um direito legal, mas que não se garante por diversas burocracias”, pontuou Marcela.
Além das dificuldades materiais, são encontradas barreiras pessoais em cada aluno que chega. Alguns possuem histórico de desistência e problemas financeiros e familiares que, na maioria das vezes, acabam prejudicando sua participação e desejo de aprender. A estudante de Pedagogia, educadora e participante do coletivo de juventude do MST Alagoas, Jislaine Maciel, conta que muitos educandos e educandas trabalham o dia inteiro e acabam faltando a aula devido ao cansaço do cotidiano.
“Alguns dormem durante as aulas, sentem dificuldade de enxergar, mas não podem estudar durante o dia em razão do trabalho. O resultado disso e de tantas outras questões que vão aparecendo durante o percurso da alfabetização é a evasão. Às vezes, a turma começa com 15 educandos/as, depois 10 passam a frequentar e cinco finalizam o processo. Acontece ainda de o processo ser interrompido antes mesmo da etapa final em razão da evasão”, lamenta a universitária.
Sem fronteiras
Apesar dos empecilhos, o que move a iniciativa é, sobretudo, levar a educação para todas as pessoas que desejam aprender, tirando-as da condição de analfabetos e dando um pouco mais de liberdade e dignidade para cada uma delas.
“É por compreender que a educação não está dentro de um espaço vazio, mas de uma estrutura social, econômica e cultural de poder que, inclusive, interfere na permanência dessas pessoas na sala de aula, que buscamos construir um processo alfabetizador que tenha também como pretensão a construção de planos de aulas críticos e que dialoguem com a vivência dos/as educandos/as”, explicou a estudante de Pedagogia.
Além disso, o “Sim, eu posso!” influencia na visão de vida não só dos alunos como dos educadores que participam do movimento. “Sei que uma educação que ignora o racismo, o feminicídio, a homofobia, a transfobia, a luta pela terra, a ausência de escolas no campo, não me serve. Não poderia deixar de agradecer por essa oportunidade que nos forma com novos valores humanos e nos enche de mística para acreditar que ‘se não houver o amanhã, brindaremos o ontem’”, finalizou Jislaine.
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