Moradores da parte alta da cidade perdem, ao menos, 4 horas por dia em deslocamento

Acordar pouco depois do sol nascer e enfrentar uma longa jornada até o trabalho é a rotina diária de milhares de moradores da parte alta da capital alagoana. Para quem vive nos bairros mais afastados do centro, como o Benedito Bentes, Tabuleiro do Martins e Eustáquio Gomes, o deslocamento para a parte baixa da cidade, onde se concentram as principais áreas comerciais e serviços, pode ser considerado uma verdadeira via crúcis. 

Com o número baixo de linhas de ônibus e o aumento do tempo de viagem provocado pela ausência de políticas públicas de mobilidade urbana, esses trabalhadores e trabalhadoras têm suas vidas afetadas de maneira significativa.

Em média, quem mora na parte alta de Maceió leva cerca de duas horas para chegar ao centro da cidade ou a orla marítima. Somando-se o tempo de volta, são quatro horas diárias dedicadas apenas ao deslocamento. Fazendo as contas, é como se por semana, para quem trabalha de segunda a sexta-feira, 20 horas fossem perdidas.

Jovem trabalha na parte baixa da cidade e perde, ao menos, 4 horas por dia em deslocamento (Foto: Orlando Costa/Olhos Jornalismo)

A recepcionista Hállice Hellen, 27 anos, sabe bem do que estamos falando. Moradora do conjunto Cruzeiro do Sul, na região metropolitana de Maceió, a jovem sai de casa às 05h40 da manhã com destino à Ponta Verde, onde trabalha. São 24 kms divididos, muitas vezes, entre ônibus e van ou coletivo intermunicipal. Se a saída para o trabalho é dispendiosa, a volta é ainda mais complicada. 

Quando Hállice perde a hora do único ônibus, precisa desembolsar entre R$3,49 a R$5 a mais para custear ou outro coletivo, ou uma van complementar.

“Na última semana, bati o recorde e cheguei era por volta das 21h20, porque houve um acidente na Fernandes Lima e tudo ficou ainda mais parado. Mas, mesmo assim, todos os dias, chego por volta das 20h/ 20h10 em casa. Me sinto exausta, sem forças. Basicamente, é chegar, ver a minha filha, comer e dormir para o outro dia. No sábado, dia que não trabalho, às vezes meu marido fala para a gente ir à praia, mas eu só quero passar o dia todo dormindo”, conta Hellen.

Essa realidade é vivida por muitas pessoas que, assim como a jovem, sofrem não apenas com o tempo perdido, mas também com o alto custo do transporte. Um trabalhador que precise pegar quatro ônibus por dia gasta cerca de R$ 280 por mês, apenas com transporte, o que compromete uma parcela significativa do orçamento familiar, sobretudo para aqueles que recebem um salário mínimo.

A dona de casa Cristiane Maciel, mãe da Hállice, cuida da pequena Maria Helena, de três anos, enquanto a recepcionista trabalha e, sempre que  possível, para não ver a filha passar muito tempo a espera dos coletivos, custeia sua passagem de van.

Hállice segura a pequena Maria Hellena, de 3 anos, ao lado da mãe, Cristiane Maciel (Foto: Orlando Costa/Olhos Jornalismo)

“Quando a gente tem algo sobrando, eu falo com ela e faço um pix para  que ela chegue em casa antes. A parte alta está cada dia mais aumentando o número de pessoas. Ela pega cedo, acorda às 5h, às vezes para chegar às 21h por aqui. Passa ano, entra ano, nada muda.  Ninguém está olhando para nós. É muito desigual. A gente está vivendo uma vida muito atribulada, sem qualidade alguma nesse sentido”, desabafa Maciel.

Crime da Braskem piorou situação

Além dos problemas estruturais de mobilidade que já existiam, os moradores da parte alta de Maceió enfrentam, nos últimos anos, um agravante importante: o fechamento de vias de acesso, causado pela extração de sal-gema realizada pela Braskem. A empresa foi responsável por desestabilizar o solo dos bairros Pinheiro,  Bebedouro, Mutange, Bom Parto e parte do Farol, impactando a vida de 60 mil pessoas e obrigando a interdição de ruas e avenidas essenciais para o fluxo de trânsito entre as regiões.

Em fevereiro deste ano, inclusive, uma empresa contratada pela mineradora interditou definitivamente 23 ruas nos bairros Pinheiro e Bebedouro, por orientação da Defesa Civil. O órgão alegou que a medida tinha o objetivo de garantir segurança aos condutores.

A Avenida Major Cícero de Góes Monteiro, uma das principais vias entre as duas partes da cidade, também foi severamente afetada, após ser interditada em 2020, o que obrigou a adoção de outras rotas, muitas vezes mais longas e congestionadas, como a Fernandes Lima e a Durval de Góes Monteiro.

Avenida C[icero de Góes Monteiro foi fechada há mais de quatro anos (Foto: Ailton Cruz/Gazeta de Alagoas)
A situação piora ainda mais nos horários de pico. Para quem depende de transporte público, como a maioria dos trabalhadores da parte alta, o cenário é ainda mais desafiador, que o diga  Ely dos Santos, estudante de Agronomia da Ufal.

O estudante  foi um dos afetados pela mineração da Braskem e teve que sair de seu lar, localizado no Mutange,  ainda em 2020. Sua situação é o raio – x sintomático das consequências do crime da petroquímica nas questões relacionadas ao Direito à Cidade. Atualmente, ele mora com os pais na região do “Campo das Cerâmicas”, no Tabuleiro do Martins, parte alta da capital alagoana. 

Sua vida virou de cabeça para baixo quando sua rotina teve de mudar drasticamente. Perdeu os elos com a vizinhança, o por do sol que beira à Lagoa Mundaú, o som da torcida que fazia pressão quando o CSA estava na berlinda do campeonato e, principalmente, a paz de morar em um lugar que estava perto de tudo.

“Hoje, eu tive que mudar toda a minha rotina. Tudo meu é cronometrado. Antes, eu ia caminhando ou de bike até o centro de Maceió. Chegava nos cantos, tudo a pé, na maioria dos casos. Agora, preciso me deslocar da minha casa até a Avenida Durval de Góes Monteiro para poder ter mais opções de ônibus e me locomover. É exaustivo”, explica o universitário.

Com a mudança de casa,  Ely passou também a gastar com aplicativos de transporte e até mesmo ficar mais recluso, uma vez que as saídas são mais desgastantes devido aos congestionamentos e a distância para os lugares que frequentava.

Ely dos Santos (Foto: Alyne Sakura/Olhos Jornalismo)

“Hoje, eu conto nos dedos às vezes que vou ao Centro da cidade. Era coisa que fazia sempre. Até isso me afetou. Além disso, quando eu volto da Ufal, ou vou para algum lugar, a depender, eu pego Uber para não descer no ponto mais esquisito, principalmente à noite, uma vez que preciso andar cerca de 15 minutos da Avenida até a minha casa. Essa empresa afetou não só a mim como toda a minha família”, conta o estudante.

Múltiplos caminhos

Enquanto os maceioenses tentam se adaptar a essa nova realidade, as promessas de na mobilidade urbana parecem no mínimo desconexas ou superestimadas. Recentemente, foi anunciado para o sistema de transporte público de Maceió, utilizado por mais de 600 mil pessoas, o BRT, sigla para Bus Rapid Transit (Trânsito Rápido de Ônibus, em português). Um investimento de R$ 2 bilhões que promete garantir agilidade, conforto e velocidade nos deslocamentos na capital.

 

 

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Serão 14 km de faixa exclusiva para os ônibus do BRT no principal corredor de transportes, formado pelas avenidas Lourival de Melo Mota, Durval de Góes Monteiro e Fernandes Lima. O espaço ficará à esquerda da via, junto ao alinhamento do canteiro central.  

O arquiteto e urbanista Pablo Fernandes, presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento de Alagoas, conselheiro estadual do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (Cau-AL) e coordenador do BrCidades Maceió, comenta que a implantação desse sistema não pode ser encarada como solução para um problema complexo.

“É preciso uma verdadeira revolução na mobilidade urbana de Maceió, principalmente no transporte coletivo. Falo no investimento em ciclovias, calçadas e passeios públicos. Falo em rever todos os itinerários dos coletivos, com uma integração que funcione de verdade (inclusive entre modais). Utilizar o Vale do Reginaldo como eixo para a implantação de um metrô que siga do Poço até Benedito Bentes/Aeroporto, por exemplo”, argumenta o arquiteto.

Fernandes lamenta que as soluções propostas diminuam a área verde mais usada pelo maceioense ou que consistam, simplesmente, em alargar avenidas, o que, segundo ele, não irá solucionar o problema e ainda dificultar o tráfego de pedestres. Ele ressalta que além da qualidade do transporte coletivo, outros fatores também interferem na mobilidade.

“Imaginem um Programa de Moradia para ocupar os prédios abandonados no Centro da cidade, dando preferência a trabalhadores desta região. Moradores do Benedito Bentes – que perdem até 4h por dia para se locomover ao trabalho – gastariam 10 min, melhorando a qualidade de vida dessas pessoas e diminuindo o trânsito entre as partes alta e baixa. E isso não se restringe ao Centro. Há vários prédios abandonados por toda a cidade que poderiam ser parte de um grande programa de habitação de interesse social”, defende o arquiteto.

 

Ainda sobre o tema, a reportagem da Redação Nordeste ouviu Jéssica Lima, professora da Ufal, doutora em Engenharia de Transportes e Gestão das Infraestruturas Urbanas pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)  e eleita pelo anuário do Vulog uma das 21 mulheres mais influentes no mundo em mobilidade.

“Maceió é uma cidade que realmente precisa de um sistema de transporte de massa mais robusto para responder a essa demanda, mas só essa medida não é suficiente. Não existe uma única solução. A solução é integrada com o planejamento urbano. Tudo isso é muito mais complexo, são inúmeras variáveis. A gente, inclusive, não tem Plano Diretor – que está atrasado, assim como o Plano de Mobilidade Urbana (PMU). Sobre o BRT, faltam mais detalhes. As integrações precisam ser feitas para que isso, de fato, funcione”,  explicou a especialista.

Para Lima, a mobilidade urbana apresenta desafios e consequências sentidas, principalmente, nos grupos vulneráveis.

“Quando o PMU não existe, o que acontece agora? Boa parte dos recursos da Braskem, por exemplo, estão sendo usados para aberturas de vias e recapeamentos que beneficiam usuários de carros que correspondem a menos de 25% das viagens em Maceió. É um percentual pequeno de quem se beneficia dos recursos que existem para melhoria da mobilidade. E não para construção de ciclovias, melhorias de calçadas, faixas exclusivas. É o que chamamos de demanda induzida. As pessoas que são mais vulneráveis vão sendo jogadas para as margens da cidade cada vez mais excluídas e perdendo espaço nos territórios que são mais disputados”, comenta Lima, que mantém o perfil no Instagram “A transportista”

 

“É importante destacar que o VLT também foi afetado. Teve sua demanda reduzida para 20% da demanda anterior e teve seu tempo de deslocamento afetado em 20 minutos. Esse sistema foi muito prejudicado. Precisa restabelecer esse sistema de transporte por ter uma importância regional por integrar Maceió e Rio Largo que tem fluxo diário indo e vindo para trabalhar. E, além disso, ele é viável economicamente”

Professor Doutor Cláudio Jorge Gomes de Morais (Foto: Arquivo Pessoal)

Assim como Jéssica, o doutor em Distúrbios do Desenvolvimento pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e historiador pela UFPE, Cláudio Jorge Morais, ressalta que as consequências do crime da Braskem e da ausência de políticas públicas para combater as desigualdades sobre o Direito à Cidade criaram um cenário massacrante para as populações mais pobres.

“As determinações do capital vão concentrando cada vez mais os espaços burgueses, e os precarizados ficam sempre às margens e, obviamente, oneram concretamente a vida dessa população. Vivendo de aluguel, gastando muito com o transporte, jogados a própria sorte. Há uma cidade que não é percebida pelas autoridades. A cidade precisa ser percebida pela identidade cultural e  a maioria das autoridades não consegue perceber essas representações. É uma cidade invisível que fica invisível diante das políticas públicas. É uma cidade de refugiados”, finaliza o doutor.

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