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Professor de Alagoas luta para salvar a memória do Quilombo dos Palmares

Guardião da História: Danilo Marques guarda memória da Serra da Barriga

*Este conteúdo integra originalmente o Selo Plural do Uol – projeto colaborativo com coletivos independentes, para a produção de conteúdo original

As cerca de 120 caixas empilhadas em uma sala da Ufal (Universidade Federal de Alagoas) guardam entre suas pequenas preciosidades os registros em fita K7 de intelectuais como a filósofa Lélia Gonzalez, o poeta e político Abdias Nascimento, o historiador Zezito Araújo e o sociólogo Clóvis Moura, além de documentos únicos que ajudam a preservar a memória de Zumbi dos Palmares, símbolo de resistência durante a vigência da escravidão no Brasil, e do lugar que abrigou o povoamento que o fez entrar para a história, o Quilombo dos Palmares.

Dentro das pastas amareladas encaixotadas estão ainda os estudos que garantiram o tombamento da Serra da Barriga, área que abrigou o quilombo entre entre os séculos 16 e 17 e hoje pertence ao município alagoano de União dos Palmares. O guardião desses documentos é o professor Danilo Marques, 34, coordenador geral do Neabi (Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas) da Ufal. Como os registros estão deteriorando, ele corre para digitalizar tudo e garantir que o material possa ser pesquisado à distância pela internet.

Boa parte do acervo é composta de versões únicas de documentos inéditos, seja porque os originais foram confiados à Ufal, seja porque pesquisadores do Neabi registraram eventos marcantes, explica Marques. O professor não descarta a possibilidade, ainda que remota, de haver alguma cópia em posse do no Ipeafro (Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros).

Com materiais com datas de 1980 a 2006, o acervo serviu de base para o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) transformar a Serra da Barriga em Patrimônio Cultural Brasileiro, em 1985, e Patrimônio Cultural do Mercosul, em 2017.

Lá está a exposição de motivos para tombar a Serra da Barriga, como estudos topográficos da região, entrevistas com moradores, palestras e debates em fitas k7. Estão também as atas de reuniões do conselho deliberativo do Parque Memorial Quilombo dos Palmares, uma maquete viva de como era o povoamento e foi implantado em 2007, na Serra da Barriga.

Cartazes e fotografias mantidas pelo professor da Ufal (Foto: Jean Albuquerque/Plural Uol/Olhos Jornalismo)

Há ainda documentos que traduzem como os acontecimentos de Palmares influenciam ainda hoje as discussões acadêmicas. São projetos de pesquisa sobre escravidão e os quilombolas. Dentre os manuscritos, há a cópia do livro inédito do historiador, jornalista e documentarista brasileiro, Ivan Alves Filho, sobre o Quilombo dos Palmares e cópias de transcrições do historiador Décio Freitas, autor de “Palmares – A Guerra dos Escravos”.

As gravações de Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento e Clóvis Moura, aliás, ocorreram durante o Simpósio Nacional sobre o Quilombo dos Palmares, em 1981. Deste evento, há também sonoras de Zezé Motta cantando “Senhora Liberdade”, composição de Wilson Moreira e Nei Lopes, de 1979 (“Violenta emoção, pois / Amar foi meu delito / Mas foi um sonho tão bonito / Hoje estou no fim / Senhora liberdade / Abre as asas sobre mim”).

Considerado o maior quilombo das Américas, Palmares chegou a reunir, entre escravizados fugidos, libertos e cidadãos livres, cerca de 20 mil pessoas, estimam historiadores. Também chamada de República de Palmares, por reunir diversos quilombos, o lugar é sinônimo de luta e resistência dos escravos no Brasil porque resistiu por quase 100 anos aos ataques de portugueses e holandeses até sua destruição em 1694. Depois de liderar um último esforço para repelir invasores, o último líder, Zumbi, foi assassinado em uma emboscada, um ano após Palmares cair.

Para Marques, os registros do acervo ajudam a contar a luta da população negra por direitos a partir do olhar de Alagoas. “Todas as propostas de nação e de redemocratização pensadas a partir do movimento negro têm passagem por Alagoas”, explica.

As paredes e um armário são testemunhas disso. Nelas estão colados cartazes e no móvel estão guardadas fotografias do fotógrafo Januário Garcia (1943-2021), que trabalhou extensivamente para documentar o povo preto. Há ainda caixas de isopor contendo gravações de debates, palestras e reuniões.

Preservação da memória

Diante deste acervo, a principal preocupação do professor Marques e dos outros membros do Neabi é evitar que esses documentos se deteriorem em pilhas de caixas. A primeira ação para evitar a perda ocorreu no começo de 2020.

Antes de serem aguardados no Neabi, os documentos eram mantidos em um prédio repleto de infiltrações. “São histórias que a gente tem aí dos últimos 42 anos. Nossa grande tarefa é conseguir disponibilizar isso para pesquisadores, centros sociais, jornalistas e aos demais interessados.”

Este acervo conta a história não só do acampamento da Serra da Barriga, mas da redemocratização do Brasil

Conexão antiga

A conexão com o Neabi é anterior à vida do pesquisador. Começou quando ele era aluno da Ufal. Como a maioria dos familiares moravam juntos, uma média de 11 pessoas em casa, ele teve que praticamente morar na universidade para estudar. Chegava pela manhã e só voltava à noite. Foi nesse momento que se envolveu com as atividades do núcleo. Chegou a viajar para participar de eventos acadêmicos e mergulhou nas temáticas da negritude

Um ano após se formar em história na Ufal, em 2008, o professor foi morar em São Paulo para se aperfeiçoar em arquivologia. Ficou. Fez mestrado e doutorado na capital paulista e se descobriu professor dando aula numa escola da rede estadual, que fica no limite com Guarulhos. Era lá que, após enfrentar duas horas de trânsito, ele vivenciava de perto os dilemas dos alunos, em sua maioria pessoas negras e migrantes da Bolívia.

Só voltou a Maceió devido a um problema familiar. Moradora do Flexal, bairro de Bebedouro, a avó perdeu a casa presente em um dos bairros que afundou na capital alagoana devido a problemas decorrentes da mineração de salgema feita pela Braskem.

‘Acervo atualizado sobre a luta antirracista’

Para evitar uma tragédia histórica, desta vez no acervo do Neabi, o trabalho consiste em limpar cartazes, fotografias, manuscritos e gravações, organizá-los em caixas apropriadas para que um dia possam ser abertas, e os materiais digitalizados para um banco de dados. Tudo isso será disponibilizado em um site ainda sem data de lançamento. Para colocar o projeto de pé, o Neabi tem buscado recursos em editais públicos ou via alguma emenda parlamentar. No momento, o núcleo conta com estudantes bolsistas para dar conta do trabalho.

A luta do professor Danilo Marques para preservar parte da memória de Alagoas e do Brasil traz à tona o cuidado deficiente do país com registros de sua história. Para Cláudio Jorge, mestre em História pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e doutor em Distúrbios do Desenvolvimento pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, a elite nacional tratou de registrar com perfeição a história dos vencedores e isso reflete a própria ideia de documentação.

“O patrimônio histórico ainda acaba legitimando muito mais a história do poder ou a história de vencedores em detrimento da história das minorias. Isso é flagrante. Atualmente, a gente olha a Fundação Palmares combatendo a própria condição negra”, defende o professor.

Jean Albuquerque

Jornalista, escritor e estudante de Letras na Ufal. Editor do site O que os Olhos Não Veem. Colabora com o site Negrê, correspondente em Maceió, do Portal Lunetas. Acredita no jornalismo independente, pautado pela diversidade e pelos direitos humanos.

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