Paulo inspirou o surgimento de vários estabelecimentos comerciais com recorte alternativo

A noite arapiraquense não é mais a mesma desde que Paulo Lourenço da Silva nos deixou, no alto de seus 89 anos de idade.A bem da verdade, viveu a vida com ânimo, intensidade serena e certo conforto espiritual por ter sabido a fundo uma coisa: fez o que deveria fazer, sem causar sofrimento a ninguém.

De 1973 a 2012, ele foi dono do saudoso Bar do Paulo, estabelecimento de esquina entre as ruas Dom Jonas Batinga e São Luiz, no bairro Ouro Preto, em Arapiraca, segunda maior cidade de Alagoas.

Zezito Guedes, Hermeto Pascol e Paulo (Arquivo Pessoal)

O tal “Ouro Preto” certamente se refere — em se tratando da alcunha do bairro em questão — ao fumo, cuja atividade econômica movimentou bastante o município, alçando-o à marca de “Capital do Fumo” do nosso país.

Mas essa riqueza em tons negros talvez fosse, também, pelo fato de esta ser a mesma cor das “bolachas” de vinil, tão bem guardadas na sala do “DJ do Agreste” — como era carinhosamente conhecido —, nas entranhas do Bar do Paulo.

O nosso “anfitrião da noite agrestina” tinha coleções de LPs para mais de 4 mil unidades, contando com o melhor da MPB, jazz, rock, soul, blues, samba e música latina, africana e erudita.

Essas canções que ecoavam a partir de suas bocas de som fizeram a cabeça de gerações de pais e filhos no interior alagoano, sobretudo, em épocas soturnas como a ditadura militar.

Entre as mesas, as conversas eram majoritariamente sobre cinema, música, literatura, filosofia, a vida em geral. A bebida sendo apenas pano de fundo.

Memórias

Recentemente, um grupo de cineastas alagoanos fez um curso com o Núcleo do Audiovisual de Arapiraca (Navi) e apresentou um documentário repleto de depoimentos sobre Paulo e seu bar.

O lançamento de “Memórias de um Bar de Memórias” ocorreu em maio deste ano de 2022, durante o Festival de Cinema de Arapiraca, em sessão especial nas salas do Cinesytem, no Arapiraca Garden Shopping. O filme emocionou a todos os presentes. Presente, a família recebeu troféu e o filho Paulo Celso pontuou que seu pai era um “farol para todos”.

Paulo, a esposa Antônia, seus dois filhos, Paulo Celso (camisa azul) e Délia Moura e, a direita da foto, o vizinho Jean, nos idos de março de 1975 (Foto: Arquivo Pessoal)

“Seus ensinamentos, sempre com humildade, mudaram a vida de muita gente! Por muitos anos, fiquei a seu lado na sala de vinis operando o som e vi de perto tudo aquilo acontecer. Foram anos que ele jamais esqueceu e guardou em seu coração com muito carinho. Tenho a certeza que quem passou por lá também reservou espaço especial para as vivências no Bar do Paulo. O que ele tinha a oferecer era a sua total atenção a quem frequentasse o ambiente — é como se todo mundo fosse de casa”, diz Celso.

Na oportunidade da exibição do doc, também estava presente a Antônia Carlos da Silva, esposa de Paulo, que foi a base, o sustentáculo do bar em inúmeros sentidos — inclusive, no que se refere ao paladar e ao olfato. Era seu o menu do local, tendo a famosa “Costelinha de Porco do Bar do Paulo” como um dos pratos mais apreciados da região.

Paulo em São Paulo

Natural do Complexo das Pias, em Palmeira dos Índios-AL, Paulo foi ainda jovem para São Paulo, a “cidade grande” que a todos acolheu, ainda na década de 1950. Ele tinha apenas 20 anos.

Acostumado com a enxada e os afazeres do campo, lá ele conheceu a noite, o jazz e a vida, já notando que havia coisas mais importantes que o dinheiro. Seu salário como garçom, por exemplo, era praticamente revertido em vinis, livros e jornais da época. Outra coisa que apreciava era a amizade.

Viveu na capital paulista por mais outros 20 anos. Desses, 13 já ao lado de dona Antônia — igualmente nascida em Palmeira —, que também tentou a vida por lá chegando a trabalhar em uma fábrica de costura.

A vinda de volta para Alagoas foi brusca e amarga: um trágico acidente familiar, onde morreram sobrinhos do casal em uma batida de jipe e caminhão, em plena véspera de São João. O ano era 1973.

O retorno à terra

De imediato, Paulo e Antônia vieram para Arapiraca para ficar ao lado da família naquele difícil momento.

Resolveram, então, com os dois filhos pequenos Paulo Celso e Délia Mara, se estabelecerem de vez em Arapiraca. Com a ajuda do saudoso cunhado Belarmino, os dois conseguiram comprar o local que fica na esquina entre as ruas São Luiz e Dom Jonas Batingas, no bairro Ouro Preto.

A princípio, Belarmino deu a ideia de montarem por lá uma farmácia. Mas dona Antônia insistiu em uma bodega. Vendia-se de tudo – desde pães a vassouras, desde fósforos a cachaça. O ponto de partida foi no dia 16 de setembro de 1973.

O resto é história: mais e mais gente frequentava o lugar com o passar dos anos, a partir do boca a boca. Tanto pela boa comida, como pela boa música.

A bodega virou algo muito maior. Duas mesas foram dispostas nos 16 m². Depois outras mais, sempre às quintas, sextas-feiras e sábados, tomando madrugada adentro.

Vinha gente de Maceió, Recife, Rio de Janeiro e tantos outros cantos para curtir a noite arapiraquense, livre de censores da ditadura. Um lugar mágico, feito na base da liberdade, do amor e da conversa aberta, onde chegaram a frequentar artistas locais e também figuras como Alceu Valença, Lobão, Quinteto Violado, Murilo Rosa e o universal Hermeto Pascoal. No fim das contas, o bar virou extensão da casa deles.

Essa “casa” inspirou vários outros estabelecimentos comerciais com proposta alternativa parecida em Arapiraca, como o Botequim NaBaxa, Kanteiros, On The Rocks, Ópera Bar, Buraco’s, Mystura Fyna, Vinil Coffee Bar, Baco Pub, Echoes, Habeas Copus e, mais recentemente, o Pub Treze — este último com uma homenagem ao próprio Paulo, com o projeto Quinta do Vinil.

Hoje, sexta-feira, dia 14 de outubro, completa-se exatamente 1 ano da morte, da partida, do espalhamento/espelhamento de Paulo Lourenço da Silva, o mestre Paulo do Bar do Paulo.

O que fica é a sua presença mnemônica em nossos corações e mentes — sempre que um passarinho cantar, estará ele lá segurando seus acordes e a inscrição: aqui “jazz” Paulo.

*Reportagem escrita por Breno Airan, em especial para o Olhos Jornalismo

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *