Lucas Litrento* escreve sobre as mobilizações dos artistas e os editais públicos em Alagoas

Em Alagoas, nem dá pra se falar em pós-coronelismo, ainda estamos na primeira onda. Enquanto no sudeste o protofascismo se atualiza nos mecanismos da milícia presidencial, aqui convivemos com a sombra da oligarquia dos engenhos. É assim que famílias se perpetuam no poder, onde conchavos da matemática simples do autoritarismo garantem que netos de escravistas sejam prefeitos, secretários, deputados, etc. A força dessa configuração de poder atinge a todos, da classe trabalhadora aos iludidos de uma pseudo classe média/alta; dos agentes de segurança pública aos artistas. Se alastra, principalmente, a força desmobilizadora. Por isso, a inércia divide espaço com o grito coletivo.

A pandemia não cria nada, não inaugura uma escuridão nunca antes vista. O vírus não potencializa as desigualdades, é só um vírus, privado de humanidade (e de todas as problemáticas que ela carrega). O vírus não é a causa das crises econômicas, mas elas batem à nossa porta (em algumas portas). E enquanto os bancos continuam lucrando, a classe artística (mesmo sendo a mais procurada dentre os serviços não essenciais durante a pandemia) é atingida na jugular. De músicos e poetas, atrizes e performers, a grande maioria dos artistas estão se contorcendo mental e financeiramente, em busca do mínimo. A aprovação da Lei Aldir Blanc foi uma derrota do governo federal, que cumpre uma agenda ideológica que ataca frontalmente todas as artes. Depois de muito esforço, a aprovação da lei é, ao mesmo tempo, uma grande vitória e uma ferramenta mínima e obrigatória nesse período “anormal”.

Editais e auxílios de caráter emergencial voltados para o setor cultural como vem sido lançados antes da Aldir, assim como lives solidárias, financiamentos coletivos e todo tipo possível de corre. Em Maceió, a Fundação Municipal de Ação Cultural (Fmac) vem dialogando com diversos setores artísticos, preparando o terreno para a destinação dos recursos federais. Antes disso, a Secretaria de Estado de Cultura (Secult/AL) lançou um edital emergencial de produção de lives remuneradas, o Festival Dendi Casa Tem Cultura. Desde antes do lançamento vieram críticas: tanto por parte de robôs seguidores da agenda bolsonarista até de artistas que perceberam incoerências na construção do projeto (como a ausência do audiovisual). No primeiro mês das apresentações, em junho, quase tudo normal — exceto por alguns absurdos, como a participação de apenas 1 dos 20 aprovados no segmento literatura; sabemos que quanto mais rápido se apresenta, mais cedo o dinheiro chega em mãos, então a divisão paritária das lives deveria ter sido um dos motes principais da produção do Festival.

Em julho o Dendi Casa deixou de ser emergencial. A programação só voltou no dia 20, como resposta imediata a uma série de ofícios e manifestações (midiatizadas) de fóruns e artistas, incluindo este que vos escreve agora mesmo, sentado no quintal, debaixo do céu e acabando de descobrir uma pipa entre nuvens pesadas. Pois bem, se nem as apresentações são emergenciais, os pagamentos é que não seriam. As críticas e questionamentos não foram bem recebidas. Da parte do Estado, já estamos acostumados com a ausência de diálogo. O silêncio como tônica gera resultados preocupantes. Enquanto Maceió e Arapiraca já estão em fase de pré-produção e produção dos projetos aprovados nos editais de cinema, a Secult evita o diálogo com o setor e avança muito pouco no lançamento do seu edital em parceria com a Ancine. Até hoje, alguns músicos cobram da secretaria o pagamento do cachê da virada cultural, evento em comemoração ao bicentenário de Alagoas, ocorrido em 2017. O que prova que o Dendi Casa não é um caso isolado de desorganização, os problemas são recorrentes na atual administração. O quadro piora quando analisamos as reações da entidade e de alguns dos seus representantes às críticas e apontamentos, personalizando a discussão e, em alguns casos, respondendo com agressividade — atitude corriqueira do Superintendente de Apoio à Produção Cultural, Paulo Poeta.

Infelizmente, não se trata de um descaso exclusivo da gestão atual, todos esses problemas são reflexo direto de como a cultura é tratada pelos poderes públicos alagoanos. Tanto na Fmac quanto na Secult não existem servidores concursados nativos, o que rege é o empréstimo de outras secretarias e os cargos comissionados, o que interrompe a continuidade de muitos processos internos administrativos. Para a cultura sempre o arrumadinho, o improvisado, porque na cabeça deles, historicamente, é gasto dispensável, supérfluo. Para os artistas, as migalhas ou a legitimação de instituições tradicionais, como a Academia Alagoana de Letras, que não dá conta da multiplicidade das vozes que compõem a literatura feita em Alagoas. Isso, quando não nos destinam ao folclore, principalmente os artistas populares e de matriz africana.

Todo esse tratamento subalternizado, que nos limita estruturalmente, banhado na cultura do coronelismo (ou do pseudo-coronelismo, no caso do Poeta), tem a força de grilhões. Mas esse silenciamento não é uniforme, não rebate da mesma forma nos corpos dos artistas locais.

Mesmo com todos esses problemas já mencionados, liderados pela ausência de diálogo (como se tudo que nos dessem, muitas vezes o mínimo, fosse o suficiente e inquestionável), alguns artistas, mesmo mobilizados e cientes de tudo, insistem numa abordagem morna, nos moldes da democracia liberal burguesa: ou seja, sob o pacto.

Estar fora do pacto é transitar na margem e amplificar as vozes que surgem dos cantos, mesmo que não diretamente, mas com toda a energia necessária.

Não à toa, os artistas da mobilização mais branda, que ainda dão uma colher de chá à falta de profissionalismo da secretaria estadual, são pessoas da classe média/alta e em sua maioria brancas. É muito importante traçar a régua da interseccionalidade nesse cenário das mobilizações. A diferença de método faz parte do jogo, lembremos de Dr. King e Malcolm X, que sempre estiveram no limite mas divergiam nos seus projetos políticos.

Vejamos o cenário. A pandemia uniu os artistas alagoanos e instigou a criação de comitês de crise e fóruns articulados, a liberação da Lei Aldir Blanc gerou uma série de articulações e reformulações dentro e fora da máquina pública. Vivemos sob constante ameaça de ruptura total das fracas instituições democráticas. Mesmo assim, o pacto.

Enquanto artistas não temos obrigação de nada, mas enquanto artistas organizados em fóruns representativos, em meio a todo esse panorama desmobilizador, com uma coleção de descasos da secretaria estadual, não podemos deixar que apenas uma dúzia de vozes assuma a crítica mais assertiva, sob a justificativa do resguardo da imagem, da manutenção dos players no jogo da política branca — que é, no sentido macroscópico, a verdadeira migalha.

Precisamos nos unir enquanto corpo coletivo mas múltiplo, contra todo tipo de ataque. Existe um histórico de lutas dos artistas alagoanos, apesar do receio, da mordaça do coronelismo e do pacto da pequeno-burguesia.

São mesmo antirracistas e estão ao lado de toda a classe (principalmente dos que não têm os privilégios dos sobrenomes famosos)? São tão democráticos com dizem? Ou só querem manter o pacto, fazendo a roda girar até se tornarem os próximos trovadores, bardos e Poetas?

Estamos fragmentados pela classe social, pelo sobrenome e privilégios (o Brasil em todas as instâncias).

Não sou eu quem divido.

Sou fruto dessas divisões,

da soma de muitas ausências.

Enquanto alguns artistas permitem almejar posições de poder em troca de um silêncio ou de uma mobilização que mais valoriza o ofício protocolar que a ação (e isso diz muito sobre a falta de ginga — elemento da negritude, da malandragem — e a valorização da burocracia — carimbo institucional da branquitude, um cercadinho conceitual), resultando na “queimação” de poucos periféricos e na higienização da cena, não avançaremos nada. E não digo que os meios legais e institucionais são obsoletos, mas devemos optar por todas as frentes, juntos.

Avanço é conquista coletiva, lustrar o próprio sobrenome não é nada além de egoísmo. Se não for nois por nois não sei mais como pode ser.

*Lucas Litrento é escritor, realizador cinematográfico e produtor cultural, vive em Maceió/AL. Os meninos iam pretos porque iam (Graciliano, 2019) é seu primeiro livro. O zine de poesia ROBYN (1TXW, 2020), foi lançado recentemente. TXOW, de contos, será lançado pela Edipucrs, como vencedor do Prêmio Delfos de Literatura. Assina, com Janderson Felipe, o roteiro e a direção do curta Samuel foi trabalhar (em produção).

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