Santo Amaro, Fernão Velho e Levada lideram ranking de óbitos desse tipo

Essa reportagem foi produzida com o apoio da Énois Laboratório de Jornalismo, por meio do projeto Jornalismo e Território

A ligação mais esperada do ano gerou desconfiança na família. Embora a chegada de um bebê simbolize esperança de vida, a romaria noite adentro nas unidades direcionadas ao atendimento às gestantes de Maceió sinalizava que aquele dia talvez não terminasse bem.  Sofreu por várias horas em, ao menos, duas unidades de saúde especializadas. Perdeu a consciência de tanta dor. Seus gritos não foram ouvidos. Na última maternidade — ao tentar dar à luz — tudo escureceu. Já não dava para fazer mais nada por nenhum dos dois. 

Seis anos se passaram, e ainda não é possível esquecer aquele telefonema na casa de Josete Lima. A reportagem do Olhos Jornalismo a procurou para falar sobre a partida prematura de sua irmã e do seu sobrinho. A conversa com Josete não ocorreu pessoalmente. Mesmo de longe, era possível sentir que o relato que ela escreveu por aplicativo de mensagem levaria qualquer pessoa a entender o significado da palavra tristeza: “ainda estamos aprendendo a lidar com tudo isso, a falta é grande”.

Juliana dos Santos tinha 33 anos (Arquivo Pessoal)

Mãe de primeira viagem e com quase oito meses de gestação, a irmã de Josete, a embaladora Juliana dos Santos, de 33 anos, estava à espera de Guilherme. Ela era o braço direito de seu pai, Jorge Carlos e adorava tirar fotos mostrando o barrigão.  No dia  em que os dois se foram, a família e as amigas mais próximas preparavam uma surpresa com a apresentação do enxoval do bebê já tão amado por todos.

“Ela me ligou se queixando de uma dor no estômago e pedindo para levá-la ao médico. Fomos à  Maternidade Nossa Senhora da Guia, às 20h30, do dia 16 de março de 2014. Chegando lá, a pressão estava 16.9. O médico só passou uma receita e em momento nenhum a medicou. Ele pediu para eu comprar os remédios e medicá-la em casa. Foi aí que a enfermeira olhou para ele e falou que a pressão estava muito alta. Ele respondeu que não poderia fazer nada porque ali não era uma unidade de alto risco e também não deu qualquer encaminhamento”, recorda.

Ainda no primeiro local,  Juliana começou a vomitar e sentir dor de cabeça. Do bairro do Poço para o Hospital do Açúcar, na Gruta, parte alta da capital alagoana, foram sete quilômetros para também receber uma negativa no acesso ao atendimento necessário.

“Chegamos lá e ela só foi atendida o básico porque falamos que íamos chamar a imprensa. Eles aferiram a pressão e já estava 20.6, ainda mais preocupante. A médica ligou para a Santa Mônica avisando que íamos para lá com encaminhamento. Porém, não foi liberada qualquer ambulância. Tivemos que ir de táxi. No caminho, minha irmã começou a delirar. Ela deu entrada nas primeiras horas do dia 17, fomos para casa porque demorava. Pouco tempo depois, ligaram para a  gente. Minha irmã e meu sobrinho que viria ao mundo tinham morrido”, relembra Josete.

“O médico disse que o Guilherme sofreu muito devido à pressão. Depois de um ano, no mesmo mês,  meu pai faleceu. Aí piorou tudo. Pode passar o tempo que for, mas quando a gente lembra da forma como tudo aconteceu é muito doloroso. Ficam as boas lembranças, mas sempre vai doer”, lamenta.

O caso da irmã de Josete ilustra — infelizmente — muito bem a realidade que muitas mães e recém-nascidos enfrentam. Sem acesso à saúde ou atendimento adequado, famílias têm suas trajetórias de vida interrompidas de maneira abrupta. A do pequeno Guilherme, que mal chegou a nascer, mostra a face cruel das falhas no sistema de saúde. O bebê  integra a lista das 1.249 crianças de até um ano de idade que morreram por causas evitáveis na capital alagoana entre 2011 e 2018.  Esse número representa 73% dos óbitos totais e supera ainda a média da mortalidade infantil por causas evitáveis no Brasil, com 67,26%, no período acima descrito.

 

De acordo com o Manual de Óbitos infantil/fetal do Ministério da Saúde, essas mortes precoces podem ser consideradas evitáveis, em sua maioria, desde que seja garantido o acesso em tempo oportuno a serviços qualificados de saúde. Elas decorrem, segundo o documento, de uma combinação de fatores biológicos, sociais, culturais e de problemas do sistema de saúde. 

O índice de mortalidade infantil, ou seja, mortes de até um ano de idade é realizado com base na relação entre o número de óbitos antes do primeiro ano de vida e o número de nascimentos a cada mil crianças nascidas vivas. No caso dessa reportagem, o recorte abaixo foi feito a partir de informações da Secretaria Municipal de Saúde de Maceió, obtidas via Lei de Acesso à Informação (LAI), filtrando o número de bebês que morreram por causas evitáveis por bairro versus o número de bebês que nasceram vivos também neste grupo, multiplicado por mil.  

Não é possível afirmar de maneira categórica se há uma correlação entre os territórios x nível de renda x incidência de mortes.  Mas ao comparar a renda média salarial entre os cinco bairros onde há as menores e os locais com as maiores incidências,  o resultado pode levar a algum tipo de reflexão. O primeiro grupo ganha em média R$718 por mês e o segundo R$2.090, de acordo com dados do último censo do IBGE (2010).

Verônica Brandão, gerente de Atenção à Saúde da Mulher da SMS
Verônica Brandão, gerente de Atenção à Saúde da Mulher da SMS (Ascom SMS).

A gerente de Atenção à Saúde da Mulher da Secretaria Municipal da Saúde de Maceió, Verônica Brandão, explica que os óbitos infantis são captados pelo Sistema de Mortalidade do Ministério de Saúde (SIM). Após estar de posse dessa notificação, o Comitê Municipal de Prevenção da Mortalidade Materna, Infantil e Fetal de Maceió (CMMIF), em reunião com o grupo técnico de Vigilância de Óbito Materno e Infantil, consolida e analisa as investigações e elabora um relatório. 

“Este relatório técnico contém todas as fragilidades ocorridas. Esta análise é baseada nas informações  contidas nas fichas de investigação de óbito infantil – ambulatorial, hospitalar e domiciliar”, ressalta a representante da SMS. 

Ainda segundo Brandão, o órgão acompanha os casos para identificação de fatores de evitabilidade e também para propor medidas de prevenção, avaliar a qualidade da assistência à saúde prestada à mulher e a criança,  subsidiar as políticas públicas e apresentar proposta e recomendações de medidas de intervenção para redução dos óbitos.

Enfrentando dificuldades e burocracia para ser acompanhada na gestação, Janaína Ribeiro, de 25 anos, colocou em risco a própria vida e a do seu terceiro filho. Moradora da Vila Emater II, comunidade de Jacarecica, a jovem não conseguiu realizar as consultas de pré-natal. 

Com medo de não ser atendida na maternidade e com oito meses de gravidez, Ribeiro teve que caminhar alguns quilômetros da região onde mora em direção a um posto de saúde do bairro vizinho para poder fazer a primeira e única consulta de pré-natal. 

Este número está bem abaixo do que a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Ministério da Saúde preconizam para o pleno desenvolvimento do feto: oito e seis consultas, respectivamente.

“Aqui tinha um posto, mas ele foi fechado. Tive que ir andando  e quase não me atendiam porque eu não pertencia a região. Fiquei receosa principalmente na hora de tê-la. Tive muito medo de perder por conta da maternidade ser longe e da primeira vez que fui com suspeita de que ela estaria chegando me botaram para voltar”, denuncia.

NÃO BASTA NASCER

Na Agenda 2030, dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, a Organização das Nações Unidas estabeleceu a redução mundial da mortalidade infantil entre as principais Metas de Desenvolvimento do Milênio — um conjunto de medidas para melhorar o padrão de vida das pessoas, principalmente nos países mais pobres. “Até 2030, acabar com as mortes evitáveis de recém-nascidos e crianças menores de 5 anos, com todos os países objetivando reduzir a mortalidade neonatal para pelo menos até 12 por 1.000 nascidos vivos e a mortalidade de crianças menores de 5 anos para pelo menos até 25 por 1.000 nascidos vivos”, versa o Objetivo 3

A mortalidade infantil é um indicador importante porque reflete as condições de desenvolvimento socioeconômico e a infraestrutura ambiental de uma região, assim como o acesso e a qualidade dos recursos disponíveis para a saúde materna e a população infantil.

No Brasil, o tema precisa ser observado ainda sob outros aspectos, pois não basta apenas nascer, é preciso vir ao mundo com qualidade ainda no parto.  Roberta Botelho, atualmente  com 39 anos, sabe bem do que estamos falando.

Em 2018, a gravidez dela foi considerada de alto risco pela equipe médica do posto de saúde onde reside, em  Fernão Velho, bairro situado na parte alta da capital alagoana. Por conta disso, os profissionais transferiram o acompanhamento da gestante para o Hospital Universitário.  Próximo das tão esperadas 40 semanas, numa das últimas consultas, os médicos constataram que ela não poderia voltar para casa e aguardar a hora do parto. 

Com a mudança de planos,  de uma hora para outra Botelho foi internada. As surpresas não acabaram por aí. Os dias passaram e o combinado desde o pré-natal era que o parto fosse realizado por meio de uma cesariana. Em 15 de março de 2018, Roberta foi encaminhada para a sala de cirurgia. Parte da equipe multidisciplinar já estava preparada para fazer a operação, equipamentos a postos e muita ansiedade. Mas mesmo com toda a estrutura, o médico obstetra não conseguiu fazer o que já estava combinado. Ele teria alegado que o seu turno estava no fim. No início da manhã, outra equipe da ala obstétrica decidiu que a pequena Maria Isabel viria ao mundo  por parto normal. 

O procedimento teve início e Roberta precisou tomar vários comprimidos de hormônio sintético para induzir as contrações. Após lutar contra as dores por várias horas, deu à luz. A felicidade durou segundos. O momento do parto que deveria ser especial virou um pesadelo ao perceber que sua filha havia nascido morta. Com a ausência de oxigenação cerebral, os médicos aplicaram adrenalina para tentar reanimar a neném. A bebê conseguiu reagir, mas as consequências da falta de atenção durante o parto ocasionaram na paralisia cerebral.

“A médica simplesmente veio induzir o parto com vários comprimidos até o colo do útero abrir, eu não estava em trabalho de parto. Confesso que é até difícil ter que relembrar tudo isso. Passamos ainda três meses internadas e hoje a minha menina usa uma sonda chamada gastrostomia para poder se alimentar, não senta, não balbucia e não fica em pé. Eu não queria que ela estivesse sofrendo por causa dos outros e da violência obstétrica que passei”, desabafa.

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Pediatra Cláudio Soriano, integrante da Rede de Primeira Infância (Foto: Divulgação)

O médico pediatra integrante da Rede da Primeira Infância em Alagoas (Repi-AL), Cláudio Soriano, ressalta que a atenção à criança deve começar ainda no útero.

“É primordial um atendimento mais adequado à gestante antes, durante e após o nascimento. Para que essa criança venha ao mundo com todas as oportunidades e sadia, precisamos melhorar as práticas da atenção primária, garantir principalmente que ela tenha o número correto de pré-natais, investindo na sorologia e evitando que ela contraia alguma sífilis e passe para o bebê, por exemplo. A primeira infância precisa ser prioridade em todos os sentidos. Não pode haver falhas para não comprometer o que chamamos de janela de oportunidades. Não basta nascer, é preciso nascer e se desenvolver com todos os direitos”, reforça o profissional.

Com experiência em Desenvolvimento Infantil, Emergência Pediátrica, Terapia Intensiva Pediátrica e Neonatal, Soriano argumenta que a maioria das mortes de crianças de 0 a 1 ano de idade poderiam ser evitadas pelo fortalecimento de políticas públicas direcionadas à área.

“Não podemos deixar de citar também o número de mães meninas. Ou seja, menores de 14 anos. A gravidez na adolescência é um grande risco. Além disso, a condição socioeconômica também é um fator que não pode deixar de ser observado. É preciso fazer o pré-natal. E não falo de consulta, falo em qualidade no atendimento. Em conversar, fazer todos os exames, conhecer as carências daquela gestação e isso significa que é bem mais do que cumprir o que os órgãos pedem, mas sim qualificar as equipes de saúde para prestar o serviço de maneira correta. Avançamos muito, mas ainda precisamos melhorar”, explica o médico.

A médica Jane Santos, especialista em Saúde, HIV e Desenvolvimento Infantil do UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) no Brasil vai além. Fatores como raça, tipo de moradia, parto, assistência à criança doente, direitos sexuais e reprodutivos também precisam ser considerados. 

“Tem um perfil muito evidente quando olhamos os dados, relacionados a raça/cor e aos outros fatores. É preciso também destacar que houve melhorias inegáveis ao longo dos anos, mas ainda é imprescindível investir nas condições de vida da população em geral. Ampliação do saneamento básico, melhorar a rede de educação… porque tudo isso tem uma influência marcante nas melhorias dos índices de mortalidade”, explica.

 

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Para a especialista, não há como dissociar o desenvolvimento da cidade sem antes direcionar atenção à infância. Santos também ressalta que os gestores locais da saúde precisam reforçar as políticas públicas na atenção básica para a área.

“Quando você vê a distribuição dos Cras, Creas, unidades de atenção básica nos territórios percebe-se que é necessário harmonizar de acordo com o bairro. Atualmente, a cobertura da estratégia de saúde da família é muito baixa, em torno de 30% em Maceió.  Para nós, a criança precisa dominar a cidade. Pensar que ela circula na saúde, na educação e na assistência. É por isso que precisa haver diálogo para olhar essa criança no cuidado integral.  Com direito à vida e que nenhuma morte seja aceitável. A criança deve ser colocada na cena da cidade como prioridade”, reitera.

 

 

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