A “Quebra de Xangô”, ocorrida em 2 fevereiro de 1912, considerada o maior evento de intolerância religiosa do país, destruiu 150 terreiros na cidade de Maceió (AL), e teve o envolvimento do líder político local Fernandes Lima, fundador da organização da Liga dos Republicanos Combatentes e Milicianos, que também dá nome ao principal corredor de transportes da capital alagoana.
Um exemplo disso é o episódio de racismo religioso sofrido em Maceió no último 14 de agosto, por membros da casa de axé Nifé Omi Omo Posú Betá, regida pela Yalorixá Mirian Araújo Souza Melo, a Mãe Mirian. Eles denunciam que foram expulsos do Mercado das Artes 31, complexo cultural e de artesanato, localizado no bairro histórico Jaraguá, por estarem com as vestimentas da religião de matriz africana.
“Hoje viemos fazer a nossa peregrinação aqui pelo mercado de Jaraguá, do artesanato aqui de Jaraguá e fomos postos para fora, a qual a gente não foi bem recebida. Somos povo de axé, somos povo negro, então eu acho que existe a liberdade de ir e vir. A gente não veio fazer o mal, a gente não veio vender, e sim viemos fazer a paz, trazer o axé, a qual o senhor da terra quer que a gente faça”, relatou à época em vídeo divulgado nas redes sociais o ogã Adeilson Alexandre.
Essa realidade também pode ser ilustrada a partir de dados da Diretoria de Inteligência Policial – Seção de Estatística e Análise Criminal, da Polícia Civil de Alagoas (PC-AL), obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI), de 2021 a junho de 2023. Segundo o levantamento inédito analisado pela reportagem, foram registrados 20 casos de intolerância religiosa no Estado de Alagoas, no qual a média das vítimas é de 36 anos, 16 são da raça negra, duas brancas e duas sem raça identificada. Somente até junho deste ano já foram registrados 11 casos, ou seja, 67% de ocorrências a mais em comparação com o mesmo período do ano passado. Em 2021 foram apenas registrados apenas dois casos.
A reportagem solicitou informações referentes ao período de junho de 2018 a junho de 2023, os últimos cinco anos, mas a Polícia Civil afirmou que só existem dados sobre os casos a partir de 2021 e os anos anteriores “não estão disponíveis, uma vez que a Polícia Civil de Alagoas passou por uma transição entre os sistemas que compõem a base de dados, impossibilitando a extração dos mesmos no sistema disponível”.
O Tribunal de Justiça de Alagoas (TJAL) trabalha no sentido de promover uma cultura de respeito às religiões de matrizes africanas. O projeto “Caravanas em Defesa da Liberdade Religiosa”, criado em 2019, é uma parceria entre o TJAL e a Defensoria Pública Estadual, no sentido de assegurar o direito fundamental à liberdade de culto no estado.
O objetivo é o de assegurar o direito fundamental de crença, a livre prática dos cultos religiosos e a proteção dos locais de culto e suas liturgias, cujo foco é alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030, em especial a meta 1.3, que busca estabelecer medidas de proteção social para pessoas em situação de vulnerabilidade.
A iniciativa do TJAL realiza visitas a templos afro-brasileiros que foram alvo de intolerância, além de reuniões com autoridades das entidades religiosas envolvidas para identificar as principais demandas relacionadas ao preconceito e à intolerância, coletando informações sobre situações conflituosas que requerem intervenção e encaminhando-as aos órgãos competentes.
O atendimento personalizado é oferecido por meio da visitação, com participação do então presidente do TJAL, desembargador Tutmés Airan, da juíza responsável pela Vara de Crimes contra Vulneráveis, Juliana Batistela, e do secretário da Coordenadoria de Direitos Humanos do Tribunal, Pedro Montenegro, em conjunto com membros da Defensoria Pública. Além disso, o projeto leva a emissão gratuita de documentos como CPF, registro de nascimento e carteira de trabalho, e a Defensoria Pública também presta orientação jurídica.
O “Caravanas” teve o seu lançamento realizado no terreiro Ilê Ogum Matelofan Afogeni, localizado no bairro Vergel do Lago, na capital alagoana. Logo após, seguiu para o terreiro Ilê Nife Omo Nije Ogba, no conjunto Margarida Procópio, em Rio Largo, na região Metropolitana de Maceió. O projeto também participou do I Encontro de Povos de Terreiros e Comunidades Tradicionais do município de Coruripe, visitou comunidades quilombolas na cidade de Palestina, e recebeu, na sede do TJAL, a sacerdotisa do candomblé mãe Mirian, para tratar da possibilidade de regularização fundiária do terreno onde está localizado o terreiro Nifé Omi Omo Posú Betá, no bairro Ponta da Terra, em Maceió.
O terreiro Axé Pratagy — primeiro museu ao ar livre da cultura afro e espaço religioso no bairro Riacho Doce, próximo à Praia da Sereia, no litoral norte de Maceió — que também abriga o Cine Axé, a Biblioteca Mario Garanhuns e uma sala de inclusão digital, liderado pelo baba omitoloji Célio Rodrigues dos Santos, de 61 anos, foi um dos que também tiveram contato com o projeto.
O baba, após a morte de sua avó, foi indicado pelo Orixá para ser o seu sucessor ainda adolescente. Ao completar 18 anos, assume a casa de santo “de fato e de direito”. O terreiro de Candomblé, que existe desde a década de 1940, ajuda a desmistificar o preconceito contra as religiões de matrizes africanas, promovendo uma visita guiada de universidades, escolas, além do desenvolvimento de diversos projetos culturais, como a oferta de aulas capoeira, dança afro e de percussão.
“O projeto idealizado pelo TJAL está sendo levado em várias comunidades tradicionais de matriz africana, em vários bairros, isso é muito importante porque valoriza o cidadão e traz a comunidade para o terreiro, não só para ser filho de santo e sim para compreender melhor o terreiro. Foi por meio do terreiro que a gente conseguiu levar registro de nascimento, a carteira profissional, a carteira de identidade, o RG e tantas outras coisas, tantos outros benefícios que o terreiro começa a proporcionar a partir da caravana”, disse pai Célio em entrevista à reportagem realizada em julho deste ano.
O desembargador do TJAL Tutmés Airan, de 61 anos, afirma que a visita ao terreiro faz com que o racismo religioso possa ser inibido. “Os intolerantes vão pensar duas vezes de novo antes de praticar crime”, comenta. O magistrado ainda ressalta que “não se pode tolerar a presunção daquele que acha que seu Deus é melhor do que os outros”.
O juiz relata ainda que, quando o projeto realiza as visitas, surte o efeito contrário. As denúncias, ao invés de diminuir, aumentam. “Esse tipo de prática não pode e não deve ficar impune porque quando ela fica impune ela estimula a intolerância”, acrescenta.
O desembargador defende que o projeto precisa avançar para que com o apoio de um agrupamento específico da Polícia Militar de Alagoas para trabalhar no apoio às populações vulneráveis. “Para acudi-las quando a agressão está acontecendo. Porque a Polícia Civil não faz isso. Nós estamos em processo de conversação, eles estão treinando uma turma e prometeram que assim que essa turma estiver treinada separar um corpo para criar esse grupamento.”
Enquanto esteve à frente do Tribunal, Tutmés Airan inaugurou o Centro de Cultura e Memória do Poder Judiciário de Alagoas (CCM) em 2021. Nele, há recortes de jornais da época, depoimento de estudiosos e imagens sobre a “Quebra de Xangô”, além de um totem no qual é possível tirar uma selfie com a ilustração de Tia Marcelina, um dos símbolos da resistência negra em Alagoas e uma das fundadoras do Candomblé no estado. O espaço funciona na Praça Deodoro, Centro de Maceió, de segunda a sexta, das 9h às 16h. Também é possível fazer um tour pela internet.
Os membros da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), seccional Alagoas, Kyvia Dannyelli Pereira, e Kelsin Gregory Alves responderam em conjunto por aplicativo de mensagem os questionamentos da reportagem. Eles destacam que esses números podem ser maiores já que pode haver subnotificação no registro dos casos. Mesmo assim, é possível notar que a “população vem se sentindo encorajada e segura para buscar a garantia de seus direitos à liberdade religiosa e de crença, constitucionalmente garantidos”.
Os integrantes da comissão explicam qual o procedimento adotado ao receber a denúncia. No procedimento inicial, é priorizado o acolhimento da pessoa afetada e a escuta atenta. Posteriormente, os detalhes relevantes são documentados de maneira formal, permitindo que a comissão mantenha um acompanhamento direto e minucioso. Em seguida, caso ainda não tenha ocorrido, é sugerido que a vítima registre um boletim de ocorrência, com a assistência de um dos membros da comissão, para garantir um processo transparente e respaldado.
Uma vez concluído o registro, são encaminhados ofícios às autoridades competentes, requisitando as ações necessárias e informando sobre o envolvimento ativo da comissão no assunto. A partir desse momento, a comissão assume a responsabilidade de acompanhar todos os trâmites essenciais para a resolução do caso, intervindo quando necessário para garantir que tudo transcorra conforme o devido processo legal.
O artigo 208 do Decreto Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940, do Código Penal Brasileiro, esclarece o que pode ser classificado como conduta criminosa contra o sentimento religioso: “Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia, ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso: Pena – detenção, de um mês a um ano, ou multa. Parágrafo único – Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência”.
Já a Lei 9.459/1997 acrescentou os termos “etnia” e “religião” ao texto, ampliando a lei para vários tipos de intolerância. Além disso, classifica a intolerância religiosa como prática ilegal e inconstitucional considerada crime, com pena de um a três anos de reclusão, bem como o pagamento de multa.
Embora não esteja previsto na lei mencionada acima, o termo racismo religioso tem sido defendido por líderes religiosos e estudiosos por mais se aproximar ao racismo estrutural praticado no Brasil. O termo é usado para caracterizar preconceito ou ato de violência contra membros das religiões de matrizes africanas, que são constantemente alvo de violência religiosa no país.
No sentido do combate a essa prática, o Estado avançou na criação de uma unidade policial específica para tratar desses casos. Pensando nisso, a Assembleia Legislativa de Alagoas (ALE) aprovou, em dezembro de 2020, uma delegacia especializada em apurar crimes contra os vulneráveis, incluindo o povo da religiosidade afro-brasileira.
O artigo 1º da Lei 8364 estabelece a criação da Delegacia Especial dos Crimes Contra Vulneráveis da Capital no âmbito da Polícia Civil do Estado de Alagoas – PC/AL. Essa unidade policial faz parte do Sistema de Segurança Pública e possui a responsabilidade de investigar delitos cometidos contra diversos grupos vulneráveis. Entre esses grupos, incluem-se idosos, seguidores de religiões de matriz africana, indivíduos com deficiências, quilombolas, pessoas em situação de rua, afrodescendentes, ciganos, indígenas, pessoas da comunidade LGBT+ e outros que enfrentam desafios devido a sua condição.
A norma busca assegurar proteção e justiça para esses grupos, reconhecendo a importância de abordagens específicas e sensíveis às suas necessidades particulares no sistema de justiça criminal. A delegacia que apura crimes contra vulneráveis em Alagoas ganhou o nome de Yalorixá Tia Marcelina em homenagem à africana que teve seu terreiro invadido e foi espancada durante a “Quebra”. A unidade foi inaugurada em agosto de 2022 e funciona no Complexo de Delegacias Especializadas (Code), em Mangabeiras, em Maceió, de segunda a sexta-feira, das 8h às 18h.
Elisabete Messias, de 27 anos, mestranda em antropologia social pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal), e membro do terreiro Ilê Rei Xangô, que fica na parte alta da capital alagoana, ajuda a explicar a origem do racismo religioso em Alagoas. Segundo ela, não há como desconectar do episódio da “Quebra de Xangô”.
“Hoje, não vejo como desconectar o racismo religioso que vivenciamos enquanto povo de santo do episódio da Quebra porque ele é a continuação da manifestação de uma mentalidade, de uma opinião que, em que pesem as contribuições e estudos que vão no sentido contrário (o de promover a pluralidade religiosa e o de defesa das práticas religiosas afro-alagoanas), continua sendo compartilhada, com o reforço de vários outros agentes, principalmente, das igrejas neopentecostais”, defende.
Para ela, a prática criminosa do racismo contra os povos de santo nasce a partir da concepção de que eles são vistos, ao longo do processo de socialização, como pessoas ruins, incorretas e subversivas. Além disso, o olhar para um terreiro de Candomblé ou de Umbanda é reduzido à percepção de que ali é o local para o sacrifício de animais, relação com entidades, da pomba-gira cantar sobre seus vários homens, e que há forte presença de homossexuais.
“O racismo religioso é estrutural. Isso significa dizer que ele está enraizado nas instituições que compõem a sociedade. Observe os discursos de candidatos durante os períodos de eleição: os últimos quatro anos foram pedagógicos, mas de modo geral. Qual é o apelo? Um homem sobe em um palanque e lembra as pessoas de que ele crê em Deus; ele usa seu horário de propaganda eleitoral para lembrar que ele crê. Que ele compartilha desse universo de moralidades, práticas e condutas ‘adequadas’”, argumenta.
A especialista destaca que a Lei 11.645/2008, que estabelece no sistema educacional do país o ensino da história da África e história indígena nas escolas, poderia contribuir no combate de uma mentalidade de que as religiões afro-brasileiras são ruins e inadequadas, mas não é isso o que ocorre. Ela acredita que o combate deve ser amplo e envolver articulações entre diversos agentes, não só jurídicos e legislativos, mas também que possam chegar às pessoas comuns e às dinâmicas do cotidiano.
“Uma política de combate ao racismo religioso precisa ser uma política educativa: é preciso dar condições de acesso e de estabelecimento de diálogo; é preciso pensar um programa que vise tanto promover espaços de denúncia, quanto espaços de divulgação de informação, de conhecimentos”, declara.
Foi vítima de racismo religioso? É possível realizar a denúncia por meio de uma ligação para o Disque 100, do Governo Federal, o qual é o serviço de atendimento telefônico gratuito no Brasil para denúncias de violações de direitos humanos, como abuso infantil, violência doméstica e racismo, entre outros.
*A pauta desta reportagem foi selecionada para o programa de microbolsas de reportagem Comunidades Vivas, desenvolvido por Ponte e Jornalismo e Instituto Sou da Paz para incentivar a produção de reportagens sobre práticas e soluções que melhoram a segurança pública em territórios vulnerabilizados.
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