A reportagem do Olhos Jornalismo conversou com o artista alagoano Gleyson Pereira

Tendo como melhor amigo o som melodioso dos versos cantados por artistas como Emicida, Djonga e BK, o menino, que desejou ser goleiro, bancário, empreendedor e publicitário, se encontrou verdadeiramente na arte urbana. Gleyson Pereira, o artista por trás do perfil “A Coisa Ficou Preta”, cresceu como uma criança dos anos 90, brincando na rua, andando de bicicleta, jogando bola e perdendo o tampão do dedo.

Foi na adolescência que  instigado pela música começou a ligar os pontos daquilo que não entendia e passou a fazer reflexões que o levaram a compreender que as coisas que aconteciam com ele tinham ‘um motivo’. Por meio dos seus lambe-lambes, ele vem trazendo um novo olhar sobre o combate ao racismo, empoderamento do povo negro e negritude no Brasil. 

Auto descrito como “intervenção preta no muro branco”, hoje, seu perfil no instagram conta com mais de 40 mil seguidores,  possui um site para o fortalecimento de suas produções artísticas, já foi tema de entrevista em grandes portais de jornalismo,  e, bem mais do que isso, vem despertando as negritudes e incomodando os racistas. #F*g*Neles. Deus é negra, Se o livro não diz, que cor você dá aos personagens?, Se acostume a ver com as correntes de ouro, A escravidão não acabou, só mudou de nome, Zumbi voltará, Boca bonita da porra são algumas das frases nos lambes lambes das paredes de Maceió, conhecida no meio urbando como a “Miami dos miseráveis”.

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A equipe do Olhos Jornalismo bateu um papo com Gleyson. Confira a conversa logo abaixo:

Lílian Santos: Como a arte chegou a sua vida?

Gleyson Pereira, criador do “A Coisa Ficou Preta” (Foto: Arquivo Pessoal)

Gleyson Pereira: Eu terminei cursando Administração, foi o mais próximo de empreendedorismo que encontrei, cheguei a fazer vestibular para publicidade porque me interessava também, mas acabei passando em Administração na Federal. A partir daí, tudo começou a ficar meio louco porque eu ganhei um curso de photoshop, na época eu trabalhava como voluntário na empresa júnior de administração e o curso era útil porque eu era do setor de marketing e precisava fazer umas artes. Em 2014, surgiu a possibilidade de trabalhar em uma agência de publicidade, decidi entrar, já tinha feito outro curso de Illustrator, aprendi a mexer em um editor de vídeo e acabei caindo na publicidade, então foi assim que a parte digital entrou na minha vida. 

A arte urbana iniciou em 2016 quando eu comecei a fazer alguns quadros em estêncil. Eu desmontava paletes, montava em quadrinhos pequenos e pintava com spray fazendo estêncil, comecei a fazer brincando, depois passei a vender e virou um complemento na minha renda até eu cansar. Tava querendo fazer algo pra comunidade negra na rua. A Coisa Ficou Preta nasceu na minha cabeça com o projeto de estêncil só que não tava mais me dando tesão porque era trabalhoso cortar os papéis, e eu não gostava dessa parte do trabalho, enfim, não bateu tão bem, ainda fiquei uns 2/3 anos nisso, mas nunca consegui materializar a ideia. 

Até que em 2018, acaso do destino, não conheci de fato o lambe lambe mas comecei a pensar nele como uma possibilidade. Aí, em 2018, mesmo fiz meu primeiro lambe e assumi a alcunha de artista urbano.

L.S: O que te motivou a fazer algo voltado para o empoderamento negro?

G.P: Eu levei um tempo para descobrir que era uma pessoa negra, como um homem negro de pele clara isso não fica tão óbvio e a gente acaba tendo ali um “não lugar”, você não é preto e também não é branco, então o que é você? quem é você no mundo? Então, eu demorei um tempo para entender que as coisas que aconteciam e acontecem comigo tinham um motivo e um nome. O que me fez despertar para isso foi a arte, através da música, principalmente do rap, ouvia Racionais quando era criança, na época não sabia muito bem o que tava acontecendo mas foi onde tudo começou.

Ali entre os 9 e 11 anos comecei ouvir Emicida, Criolo, PK e Djonga, depois de um tempo comecei a ligar os pontos daquilo que eu não entendia muito bem e fazer umas reflexões. Aí percebi que tava entendendo o que estava sendo dito, tava me identificando com isso, e porra, eu sou uma pessoa negra, bati esse martelo. Foi um processo longo e doloroso porque você passa muito tempo sem saber quem você é e quando decide fica naquela síndrome de impostor, “será que sou mesmo ou é viagem?”.

A música fez isso por mim e a arte que eu faço, a minha motivação inicial e principal até hoje é fazer essa retribuição. Lá atrás se não fosse as músicas que passei anos ouvindo para tentar entender alguma coisa eu não estaria aqui, então vou fazer arte, não é música mas ainda assim é uma forma de arte para quem sabe ter o mesmo efeito em outras pessoas, negros retintos, negros de pele clara, que vão ver aquilo e pensar “porra, isso aqui me fez pensar em alguma coisa” e eu quero que elas sintam isso como eu senti, como a arte fez por mim. É uma forma de retribuição. 

L.S: E nesse meio como surgiu “A Coisa Ficou Preta”? 

G.P: Eu não sei como foi o processo da escolha do nome porque tudo que eu faço demora muito e ao mesmo tempo é rápido. Então, quando surgiu a primeira fagulha na minha cabeça, eu comecei o processo, mas antes de eu saber que lambe lambe era o meu caminho, era o meu meio, “A coisa ficou preta” já existia, já tinha o nome na minha cabeça lá em 2016/2017, não sabia que material usaria mas estava ali.

Quando eu percebi o lambe falei “porra é isso!”, aí tava pronto. No outro dia eu já tinha lambe pronto, dois dias depois eu já estava colando.Eu acho que a rua é o maior e melhor museu do mundo, ela não escolhe nada, ela tá aberta 24h por dia, qualquer pessoa pode passar pela rua; ela tá se moldando o tempo todo, mudando o tempo todo, e é onde a vida acontece. Por isso, eu acho muito importante meu trabalho tá lá.  

Já o Instagram serve como uma forma de ressoar o meu trabalho pra não depender de só quem tá em Maceió poder ser impactado por aquilo. Então, me ajuda a levar minha arte para mais pessoas, pra alguém que está em outros estados, em outras regiões, em outros países dar de cara com aquilo e dizer “pô, isso aqui me representa”.  O Instagram também é onde eu consigo trocar, consigo ter uma devolutiva das pessoas e isso é foda.

L.S: De onde surgem as ideias para as produções?

G.P: Acho que é tudo repertório, sabe? Sai de livros, séries, filmes, animes que eu gosto de assistir, sai da minha vivência pessoal, de notícias, do passado, saí do futuro, de todo lugar. Eu tenho um local de anotação no meu celular, sempre quando tenho uma ideia bruta escrevo lá e isso é até um processo recente. Um tempo atrás eu mandava email pra mim mesmo, tanto é que o lambe que fala sobre pessoas negras de pele clara eu tenho o email que me mandei dele lá atrás e tava como “não lido”. Aí pensei em fazer um bloco de notas porque acho que é um pouco mais simples.

Montagem a partir dos recortes de lambe de A Coisa Ficou Preta (Crédito: A Coisa Ficou Preta)

Eu vou anotando e em algum momento faz sentido, quando aquilo tá estranho, não está formatado, deixo lá, em algum momento vai vim outra pecinha que era o que faltava,  como e quando eu deixo fluir. Participei de um edital recente de arte urbana e precisava criar uma obra pra ele, esse processo pra mim é bem mais difícil, não é tão prazeroso. Meu processo costuma ser quando eu tô na rua,  estou em casa, ou pedalando e vem a ideia de um lambe. Aí beleza, já sei o que fazer, vou atrás de foto,  penso em como tornar aquilo tangível, mas não é do nada, ele vem sendo construído através do subconsciente, quando começa a aparecer e ficar mais nítido, eu vou registrando, registrando e o negócio fica pronto, geralmente é assim que funciona. 

L.S: Como você escolhe os locais que vai colar os lambes? 

G.P: Então, isso aí vicia, eu ando pela cidade procurando muro. É muito difícil sair pra colar sem saber onde vai ser. Geralmente são coisas diferentes, um rolê de achar muro e outro de colar. Normalmente não saio para procurar muro, saio para algum lugar e no caminho eu vou caçando. Uma vez eu fui procurar quando passei um tempo no Rio de Janeiro e queria muito um lambe meu lá. Nesse dia passei literalmente 1h procurando muro pra colar no dia seguinte, achei um perfeito, salvei a  localização e no dia seguinte fui lá, então foi um processo diferente. Normalmente eu colo em locais do meu o dia a dia. 

L.S: Como você enxerga o A Coisa Ficou Preta hoje?

G.P: Eu estou em um momento muito bom comigo mesmo. Por um tempo as pessoas achavam que era um coletivo, um projeto, mas na verdade sou eu, meio um pseudônimo, sou eu, o que faço como artista urbano. Estou num momento muito bom, muito feliz e a minha arte é uma parte gigante dessa minha felicidade, tô me sentindo bem, tô me achando potente, estou me achando significativo com o que eu faço, sabe? Dá um senso de propósito, me sinto melhorando, me sinto expandindo, parece que eu nasci para isso. Sabe aquelas perguntas de mesa de bar “pô, se tu não precisasse de dinheiro, tu ia fazer o que dá vida?”, cara eu ia fazer lambe lambe, em Maceió não ia ter um muro limpo. Me sinto militante, entregando algo as pessoas, então tô muito satisfeito comigo no momento, minha autoestima está alta, não vou envergonhar por causa disso, então tô bem,  ‘A Coisa Ficou Preta’ tá bem e isso é incrível. 

L.S: A Coisa Ficou Preta integra o seu âmago. Quando o Instagram foi criado, o perfil era pessoal ou surgiu com o propósito de compartilhar esses lambes? 

G.P: Ele foi criado realmente como ‘A coisa ficou preta’. Gosto muito de registros e meio que é uma parada documental, queria alcançar mais pessoas, não queria que só as de Maceió vissem meu trabalho. Eu acho que na rua é o impacto principal, mais importante e relevante mas o Instagram é um ótimo apoio, não só ele mas a  internet como um todo. 

L.S: “O dever de um artista, no que me diz respeito, é refletir os tempos”, pregava Nina Simone. Neste sentido, você participa de algum movimento ou partido político, por exemplo? 

G.P: Não. Eu sou de esquerda. Tenho algumas preocupações, algumas coisas que sou a favor e outras que sou contra, mas me alinho mais com o discurso da esquerda, apesar de também ter seus problemas. A Sueli Carneiro tem uma frase muito boa que é tipo ‘entre esquerda e direita eu continuo sendo negra’, a esquerda é muito problemática em diversos sentidos, principalmente quando estamos falando de raça, então acaba sendo sempre o primeiro ponto de distinção entre as coisas. E assim, eu não sou engajado em nada no sentido partidário, mas enfim, a nossa própria existência política, minha arte é extremamente política. Eu tenho meus conceitos bem claros, só não sou engajado em grupos específicos. 

“Deus é negra”, um dos lambes de Gleyson Pereira (Foto: Arquivo Pessoal)

L.S: Já chegou a receber comentários negativos sobre suas intervenções?

G.P: Nunca recebi nenhum tipo de retaliação na rua, tento ficar muito ligado aos horários, os momentos que escolho colar, o caminho que eu vou voltar, isso é tudo bem pensado mas na internet é bizarro. Tem momentos de mais paz, porém, tem outros onde o discurso de ódio e o racismo não são velados, tem uns que se fazem de doido e tem a galera que é escrachada mesmo. 

Comecei a postar umas paradas no TikTok recentemente e foi onde tive a pior experiência nesse sentido, porque o algoritmo funciona de um jeito que mostra a todo mundo fora da sua rede, da sua bolha e lá meu trabalho aparecia para uma galera que não era meu “público”. Dando exemplo de um lambe virtual que pergunta quantas pessoas negras têm no seu filme favorito, eu recebi comentários como “nenhuma, por isso eu gosto dele” e assim, não foram uma, duas ou três vezes, emoji de macaco, foi bizarro. 

Eu tenho alguns lambes que mexem um pouco com a religião católica, eu não sou católico, me considero uma pessoa sem religião mas, com boa parte dos brasileiros, fui criado sob a religião católica. Eu tenho uns lambes que falam um pouco sobre protagonismo para pensar sobre quem está contando qual história, quem está ouvindo a história, porque as coisas são como são e trazer alguns questionamentos e reflexões. Numa imagem de Maria – onde na verdade ela é negra – seja Jesus sendo um homem negro… são ataques já garantidos. Teve um que colei no Centro, em frente a Catedral Metropolitana e no outro dia ele já tinha sido arrancado, foi bizarro, a galera se perde muito. Quando eu vejo que meu lambe foi arrancado, tá sem uma parte, isso não me afeta, a arte urbana é efêmera faz parte do processo. Se eu perceber que foi arrancado, na verdade, isso até me motiva a colar mais, a fazer maior e mais vezes, mas os comentários são muito diretos. 

L.S: Ainda nesta seara, em algum momento nesse anos de trabalho, pessoas que não se agradaram das intervenções urbanas te ameaçaram ou algo do tipo?

G.P: Não, porque eu apareço pouco, é difícil ver minha cara no Instagram, sempre foi proposital, começou mais como uma forma de saúde mental, de autocobrança. Eu me cobro muito e fiquei com medo de deixar evidente que sou eu e as pessoas acharem massa, aí do nada eu sumir e a galera vim “me cobrar”, eu não queria ter essa cobrança por cima da minha. Sempre tentei me manter no anonimato, mas recentemente, acho que esse ano principalmente, venho aparecendo mais, antes o máximo que você via era minha mão agora apareço colando, meu rosto já apareceu. Amigos e colegas que não sabiam que era eu, contei pra umas duas pessoas e o resto descobriram quando vieram me perguntar, mas tô me sentindo melhor com isso, tô feliz em aparecer. 

 

L.S: De que forma você encara que o projeto foi importante para sua construção e desenvolvimento pessoal?

G.P: Foi um momento muito específico em 2018 quando comecei a colar, foi ano de eleição pra presidente, muitos sentimentos negativos, muitas tensões e eu vinha em uma construção de me politizar e me conscientizar como pessoa negra, como homem negro cis, nordestino, brasileiro, e aí foi um processo. De 2018 pra frente, parece que esse processo começou a caminhar de uma maneira muito passada e eu tomava umas decisões mais pensadas em relação a onde eu gasto meu dinheiro, quem são as pessoas que eu tô lendo, quem são as pessoas que eu estou assistindo, quais são as coisas que eu falo, quais são as coisas que eu quero parar de falar e de fazer. Então, eu acho que ‘A coisa ficou preta’ foi também um processo de exposição da minha consciência, eu acho que comecei a prestar atenção em coisas que antes não prestavam e esse processo começou cada vez mais rápido e nunca vai acabar.

L.S: Qual foi o momento mais marcante vivido até hoje com o projeto? 

G.P: Eu colei um lambe ano passado sobre a educação, algo que eu gasto bastante e aí beleza, foi massa o resultado. Deu muito trabalho porque eu tive que montar esse lambe com várias imagens, a cabeça é uma imagem, o corpo são várias, o chapéu também, foi foda, como a educação pode ser libertadora para o povo negro, como é uma arma, como é uma ameaça para o sistema, para o racismo estrutural. Em um certo dia, vi uma marcação e era uma foto de um cara na colação com a mesma legenda, a mesma pose do lambe. Aí falei “caralho, posso parar de fazer o trampo agora, eu queria que acontecesse exatamente isso”. 

L.S: Todo o seu trabalho é produzido com seu próprio dinheiro? Há, atualmente, algum retorno financeiro?

G.P: Sim, todo com o meu dinheiro. Comecei a vender em 2020, tinha um pouco de medo de misturar as coisas e começar a fazer lambe para ganhar dinheiro. Só que aí 2020, insegurança financeira, eu precisava de novas fontes para incrementar no rolê. Não é algo que dá pra viver disso, é um complemento de renda, alguns meses são melhores que outros, como esse ano tô tendo um pouco mais de disciplina consigo colar mais e levo mais material para o Instagram porque só vai comprar uma pintura minha quem me conheço por lá, eu não estou em mais nenhum outro lugar, mas é uma renda complementar.

*A imagem em destaque dessa reportagem é uma adaptação do A Coisa Ficou Preta. Todos os direitos e créditos são reservados, então, ao projeto.

 

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